sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Bom e Velho Neon


Minha vida inteira eu fui uma fraude. Não estou exagerando. Praticamente tudo que eu fiz o tempo todo foi tentar criar uma certa impressão de mim nas outras pessoas. Sobretudo para ser apreciado ou admirado. É um pouco mais complicado que isso, talvez. Mas quando você vai direto ao ponto é ser apreciado, amado. Admirado, aprovado, aplaudido, tanto faz. Você pegou a ideia. Eu fui bem na escola, mas lá no fundo o motivo da coisa toda não era aprender ou melhorar a mim mesmo mas apenas ir bem, tirar boas notas e fazer parte de times esportivos e ter um bom desempenho. Ter uma boa transcrição e cartas do time do colégio pra mostrar pras pessoas. Eu não aproveitei muito disso porque eu estava sempre assustado achando que eu não ia me sair bem o suficiente. O medo me fez me dedicar pra valer, de modo que eu iria sempre me sair bem e conseguir o que eu queria. Mas então, uma vez que eu tivesse tirado a melhor nota ou garantido All City ou levado Angela Mead a me deixar pôr minha mão no peito dela, eu não sentia muita coisa exceto talvez o medo de que não seria capaz de conseguir isso de novo. Da próxima vez ou próxima coisa que eu quisesse. Eu me lembro de estar lá embaixo na sala de jogos no porão com a Angela Mead no sofá e ela tendo me deixado colocar minha mão debaixo da blusa dela e nem sequer realmente sentindo o macio vívido ou seja-o-que-for do peito dela porque tudo que eu estava fazendo era pensar, ‘Agora eu sou o cara com quem a Mead deixa chegar a um segundo nível.’ Mais tarde isso pareceu tão triste. Isso foi na escola secundária. Ela era uma garota de grande coração, calma, autocontida, pensativa—ela é veterinária agora, com sua própria prática—e eu nunca sequer a vi realmente, eu não podia ver nada exceto quem eu poderia ser nos olhos dela, essa líder de torcida e provavelmente a número dois ou três entre as garotas mais desejadas na escola secundária naquele ano. Ela era muito mais do que isso, ela estava além de todo esse ranking adolescente e essas porcarias de popularidade, mas eu nunca realmente a deixei ser ou a vi como mais, embora eu tenha montado uma fachada muito boa como alguém que pode ter conversas profundas e realmente querer saber e entender quem ela era por dentro. 

   Depois eu fiz análise, eu tentei análise assim como quase todos os outros em seus vinte e poucos que haviam conseguido algum dinheiro ou constituído família ou seja lá o que for que eles pensaram que queriam e que continuaram não sentindo que eram felizes. Um monte de gente que eu conhecia tentou isso. Não deu muito certo, embora tenha feito todo mundo soar mais ciente de seus próprios problemas e adicionado algum vocabulário e uns conceitos úteis para o modo como todos nós tínhamos que falar uns com os outros para encaixar isso melhor e soar de uma certa maneira. Você sabe o que eu quero dizer. Eu estava envolvido com publicidade regional em Chicago no momento, tendo feito o pulo de uma compradora média para uma grande firma consultora, e com apenas vinte-nove eu fiz uma associação criativa, e verdadeiramente como eles diziam eu era um garoto laureado e na marcha rápida, mas não era nem um pouco feliz, seja lá o que feliz signifique, mas é claro que eu não disse isso pra ninguém porque seria um tamanho clichê—‘Lágrimas de um Palhaço,’ ‘Richard Cory,’ etc.—e o círculo de pessoas que pareciam importantes pra mim aparentavam ser muito mais secas, oblíquas e desdenhosas com clichês como esse, e então é claro que eu gastei todo meu tempo tentando fazer com que elas pensassem que eu era tão seco e entediado quanto, fazendo coisas como bocejar e olhar pras minhas unhas e dizer coisas como, ‘Eu sou feliz? é uma daquelas perguntas que, se precisam ser feitas, meio que já ditam a própria resposta,’ etc. Colocando em tudo isso tempo e esforço para criar uma certa impressão que me levasse a conseguir aprovação ou aceitação de tal modo que então eu não sentia nada a respeito porque já não tinha nada a ver com quem eu realmente era por dentro, e eu estava tão aborrecido comigo mesmo por ter sido sempre essa tamanha fraude, mas parecia que eu não conseguia me ajudar nisso. Aqui estão algumas das várias coisas que eu tentei: EST, pilotar uma bicicleta de dez marchas na ida e na volta  a Nova Scotia , hipnose, cocaína, quiropraxia sacro-cervical, fazer parte de uma igreja carismática, fazer cooper, trabalhos públicos para o conselho de anúncios, aulas de meditação, os maçons, análise, o Fórum Landmark, o Curso em Milagres, um workshop de desenho com o lado direito do cérebro, celibato, colecionar e restaurar Corvettes clássicos, e tentar dormir com uma garota diferente todas as noites por dois meses inteiros (eu acumulei um total de trinta-e-seis para sessenta-e-um e também peguei chlamydia, o que eu falei com amigos a respeito, agindo como se estivesse constrangido mas secretamente esperando que a maioria deles ficassem impressionados—o que, sob a capa de estarem fazendo um monte de piadas às minhas custas, eu acho que eles estavam—mas a maior parte desses dois meses fez apenas com que eu me sentisse superficial e predatório, além disso eu perdi uma grande quantidade de sono e fiquei como um naufrago no trabalho—esse foi também o período em que eu tentei a cocaína). Eu sei que essa parte é chata e provavelmente está te entediando, mas, a propósito, fica muito mais interessante quando eu chego na parte na qual eu me mato e descubro o que acontece imediatamente após uma pessoa morrer. Em termos de lista, psicanálise foi praticamente a última coisa que eu tentei.            

   O analista que eu frequentei era OK, um cara gordo e agradável com um bigode comprido e ruivo e no mais uma pessoa simpática, com uma espécie de jeito informal. Eu não tenho certeza se me lembro dele vivo muito bem. Ele era um ouvinte bastante bom, e parecia interessado e compreensivo de um modo levemente distante. De início eu suspeitei que ele não gostasse de mim ou estivesse inquieto com a minha presença. Eu não acho que ele estivesse acostumado com pacientes que já estavam conscientes de qual era o problema real deles. Ele também era um pouco empurrador de pílulas. Eu me recusei a tomar antidepressivos, eu simplesmente não conseguia me ver tomando pílulas para tentar ser menos fraudulento. Eu disse que mesmo que elas funcionassem, como eu poderia saber se era eu ou apenas as pílulas? Naquele tempo eu já sabia que eu era uma fraude. Eu sabia qual era o meu problema. Eu simplesmente não conseguia parar. Eu me lembro que eu gastei talvez as vinte primeiras vezes ou mais de análise atuando como se fosse todo aberto e cândido mas na realidade meio que duelando com ele ou levando-o pelo nariz, basicamente mostrando que eu não era apenas mais um desses pacientes cambaleando sem a menor ideia de qual seria seu problema real ou desses que estão totalmente fora de contato com a verdade sobre si próprios. Quando você vai direto ao ponto, eu estava tentando mostrá-lo que eu era no mínimo tão inteligente quanto ele e que não tinha muita coisa que ele viria a ver sobre mim que eu já não tivesse visto ou descoberto. No entanto eu queria ajuda e realmente estava lá pra conseguir alguma ajuda. Eu nem ao menos contei pra ele o quão infeliz eu era até uns cinco ou seis meses de análise, principalmente porque eu não queria aparentar ser apenas mais um desses pobres vencedores, yuppies autoabsorvidos, apesar de pensar que mesmo nesse período eu já estava consciente em algum nível de que isso era o que eu realmente era, lá no fundo.   

   Desde o começo, o que eu mais gostei no analista foi que o escritório dele era uma bagunça. Havia livros e papéis por toda parte, e ele geralmente tinha que tirar coisas do assento para que eu pudesse sentar. Não tinha sofá, eu sentava em uma poltrona e ele sentava de frente pra mim em sua surrada cadeira de escritório cuja parte de trás tinha um desses grandes retângulos ou capas de bolinhas de massagem pras costas fixo do mesmo modo que taxistas frequentemente colocavam em seus bancos no taxi. Isso era outra coisa que eu gostava, a cadeira de escritório e o fato de que ela era um pouco pequena demais pra ele (ele não era um cara pequeno) de forma que ele tinha que se sentar meio que quase arqueado com seus pés planos no chão, ou então às vezes ele colocava suas mãos atrás da cabeça e recostava-se na cadeira de um modo que fazia a parte traseira guinchar terrivelmente quando ela se inclinava para trás. Sempre parece ter algo de padronizador ou um pouco condescendente em alguém que cruza as pernas enquanto fala com você, e aquela cadeira de escritório não permitia que ele fizesse isso—se ele alguma vez cruzasse as pernas seu joelho ficaria lá perto do queixo. No entanto ele aparentemente nunca tinha saído para adquirir uma cadeira de escritório melhor ou maior, ou até mesmo se incomodado de olear as articulações médias da mola para deixar a parte traseira sem aqueles guinchos, um barulho que eu sei que teria me conduzido contra uma parede se essa fosse a minha cadeira e eu tivesse que passar o dia inteiro nela. Eu notei tudo isso quase de uma vez. O pequeno escritório também exalava a tabaco de cachimbo, o qual é um cheiro agradável, sem contar que o Dr. Gustafson nunca tomava notas ou respondia tudo com perguntas ou qualquer outro desses clichês e coisas de analista que teriam tornado a coisa toda demasiadamente horrível para continuar voltando quer isso estivesse ajudando ou não. O efeito completo era de um tipo simpático, desorganizado e descontraído de cara, e as coisas lá na verdade ficaram melhores depois que eu percebi que ele não ia fazer nada para me impedir de duelar com ele e antecipar todas suas perguntas de modo que eu pudesse mostrar que já sabia a resposta—ele iria ganhar seus $65 de qualquer maneira—e finalmente saiu e contei pra ele sobre ser uma fraude e me sentir alienado (eu tive que usar a palavra da parte alta da cidade, é claro, mas ainda era a verdade) e começando a me ver terminando por viver dessa maneira pelo resto da minha vida e sendo completamente infeliz. Eu disse pra ele que não estava culpando ninguém por eu ser uma fraude. Eu tinha sido adotado, mas isso foi quando bebê, e os pais adotivos que me criaram eram melhores e mais agradáveis que a maioria dos pais biológicos que eu sabia alguma coisa a respeito, e eu nunca fui agredido ou abusado ou pressionado para atingir .400 na Legion ball ou qualquer coisa assim, e eles fizeram uma segunda hipoteca para me mandar para uma faculdade de elite quando eu poderia ter conseguido uma bolsa de estudos na U.W.-Eau Claire, etc. Ninguém nunca fez nada de errado comigo, cada problema que eu alguma vez tive eu fui a causa. Eu era uma fraude, e o fato de que eu estava sozinho era minha própria culpa (é claro que os ouvidos dele se apuraram para culpa, que é um termo carregado) porque eu parecia estar tão totalmente autocentrado e fraudulento que eu experienciava tudo em termos de como estaria afetando a visão das pessoas de mim e o que eu precisaria fazer para criar a impressão de mim que eu queria que elas tivessem. Eu disse que eu sabia qual era o meu problema, o que eu não podia fazer era para-lo. Eu também admiti pro Dr. Gustafson algumas das maneiras com que eu tinha tentado fazê-lo de idiota anteriormente e tentado garantir que ele me veria como inteligente e autoconsciente, e disse que eu sabia mesmo naquele período que ficar jogando assim e me exibindo na análise era uma perda de tempo e de dinheiro mas que eu parecia não conseguir me ajudar, apenas acontecia automaticamente. Ele sorriu ao ouvir tudo isso, nessa que foi a primeira vez que eu me lembro de tê-lo visto sorrindo. Eu não quero dizer que ele era azedo ou sem humor, ele tinha um rosto amigavelmente grande e vermelho e um estilo agradável o suficiente, mas essa foi a primeira vez que ele sorriu como um ser humano tendo uma conversa real. No entanto eu vi na mesma hora a lacuna que eu tinha deixado aberta contra mim—e com certeza ele diria. ‘Se eu te entendi bem,’ ele diz, ‘você está dizendo que você é basicamente uma pessoa calculista e manipulativa que sempre diz o que você pensa que vai levar alguém a te aprovar ou formar alguma impressão sobre você que você pensa que você quer.’ Eu disse pra ele que isso era talvez um pouco simplista mas basicamente acurado, e ele disse mais adiante que se ele tinha entendido bem eu estava dizendo que era como se eu estivesse preso nesse falso modo de ser e incapaz de alguma vez ser totalmente aberto e dizer a verdade independentemente de se isso me faria parecer bem aos olhos dos outros ou não. E eu meio que resignadamente disse sim, e que eu parecia sempre ter tido essa parte fraudulenta e calculista do meu cérebro disparando o tempo todo, como se eu estivesse constantemente jogando xadrez com todo mundo e descobrindo que se eu quisesse que eles se movessem de uma certa maneira eu teria que mover de tal maneira para induzi-los a se moverem dessa maneira. Ele perguntou se eu já tinha jogado xadrez, e eu disse que costumava jogar quando estava na escola secundária mas parei porque não conseguia ser tão bom quanto eu eventualmente queria ser, quão frustrante é se tornar bom o suficiente para saber o que se tornar realmente bom nisso seria mas não estar apto a alcançar esse bom, etc. Eu estava colocando isso de um modo um pouco denso na esperança de distraí-lo do grande insight sobre a questão que eu percebi que tinha deixado aberta contra mim. Mas não funcionou. Ele se reclinou em sua cadeira ruidosa e fez uma pausa como se estivesse pensando pra valer, com efeito—ele estava pensando que  ia começar a sentir como se tivesse realmente merecido seus $65 hoje. Parte da pausa sempre envolvia afagar seu bigode de uma maneira inconsciente. Eu estava razoavelmente convicto que ele iria dizer alguma coisa como, ‘Então como é que você foi capaz de fazer o que acabou de fazer um momento atrás?,’ em outras palavras significando que ele estava pensando que me pegaria em algum tipo de contradição lógica ou paradoxo. E eu fui em frente e me fiz um pouco de pateta, provavelmente, para levá-lo a ir em frente e dizer, em parte porque eu continuava mantendo alguma esperança de que o que ele ia dizer poderia ser mais discernível ou incisivo do que o que eu tinha previsto. Mas foi em parte também porque eu gostava dele, e eu gostava da maneira como ele parecia genuinamente satisfeito e excitado com a ideia de ser prestativo mas estava tentando exercer controle profissional sobre sua expressão facial no intuito de fazer a excitação parecer mais como simples amenidade e interesse clínico no meu caso ou seja lá o que for. Ele era difícil de não gostar, ele tinha o que é conhecido como um jeito cativante. Por meio de decoração, a parede do escritório atrás da cadeira dele tinha duas pinturas emolduradas, uma sendo aquela do Wyeth de uma garotinha no campo de trigo subindo uma colina em direção à fazenda, e a outra uma natureza morta de duas maçãs em uma tigela sobre a mesa do Cézanne. (Para ser sincero, eu só sabia que era do Cézanne porque era um pôster de um Instituto de Arte e tinha um banner com informações sobre o Cézanne debaixo da pintura, que era uma natureza morta, a qual era estranhamente desconforme porque tinha algo levemente fora do lugar no que se refere à perspectiva ou estilo que fazia com que a mesa parecesse torta e as maçãs quase quadradas.) As pinturas estavam ali obviamente para dar aos pacientes do analista algo para olhar, já que muitas pessoas gostam de olhar ao redor ou olhar pras coisas nas paredes enquanto falam. Eu não tinha nenhum problema em olhar direto pra ele na maior parte do tempo em que eu estava lá, no entanto. Ele tinha um talento para te deixar tranquilo, não há dúvida sobre isso. Mas eu não tinha nenhuma ilusão de que isso não era nada mais do que ter o insight ou poder de fogo o suficiente para tentar achar alguma maneira de realmente me ajudar, no entanto.          

   Tinha um paradoxo lógico que eu chamava de ‘paradoxo da fraudulência’ que eu tinha descoberto mais ou menos por minha conta enquanto assistia um curso de lógica matemática na escola. Eu me lembro disso como sendo uma enorme palestra de graduação cuja reunião acontecia duas vezes por semana em um auditório com o professor em cima do palco e nas sextas em seções menores de discussão lideradas por um assistente graduado cuja vida inteira parecia ser lógica matemática. (Além de que tudo que você tinha que fazer para ser um ás na classe era sentar com o livro atribuído cujo professor era o editor e memorizar os diferentes modos de argumento e formas normais e axiomas de qualificação de primeira ordem, o que significa que o curso era claro e mecânico assim como a própria lógica em que se você colocar tempo e esforço, eis que estoura em uma boa nota na outra extremidade. Nós só chegamos a paradoxos como os paradoxos de Berry e Russel e no teorema da incompletude bem no final do prazo, e eles não caíram na prova final.) O paradoxo da fraudulência era que quanto mais tempo e esforço você colocava em tentar parecer impressionante ou atraente para as outras pessoas, menos impressionante ou atraente você se sentia por dentro—você era uma fraude. E quanto mais você se sentia uma fraude, mais ainda você tentava transmitir uma imagem impressionante e amável de você mesmo de forma que as pessoas não descobrissem o quão vazio e fraudulento você realmente era como pessoa. Logicamente, você pensaria que no momento em que o garoto de dezenove anos de idade supostamente inteligente se torna ciente desse paradoxo, ele iria parar de ser uma fraude e apenas resolver que seria ele mesmo (seja lá o que isso for) porque ele descobriu que ser uma fraude é uma regressão infinitamente viciosa que em última análise resulta em se sentir amedrontado, sozinho, alienado, etc. Mas aqui estava o outro, o paradoxo de ordem superior, que nem sequer tem uma forma ou nome—eu não fiz, eu não poderia. Descobrir o primeiro paradoxo aos dezenove anos de idade apenas trouxe de uma forma extrema pra a casa e pra mim o quão vazio e fraudulento tinha sido o tipo de pessoa que eu basicamente fui desde pelo menos quando eu tinha quatro anos e menti pro meu padrasto porque eu percebi de alguma forma bem no meio de quando ele estava perguntando se eu tinha quebrado o vaso que se eu dissesse que eu tinha mas ‘confessasse’ isso de uma forma um tanto quanto desajeitada, implausível, então ele não iria acreditar em mim e iria em vez disso acreditar que minha irmã Fern, que é a filha biológica dos meus pais adotivos, era quem tinha na verdade quebrado o antigo vaso de vidro que minha madrasta tinha herdado de sua avó biológica e amava totalmente, além de que levaria ou induziria ele a me ver como um bom e gentil irmão adotivo que estava tão ansioso para manter Fern (de quem eu realmente gostava) sem se meter em problemas que eu estaria disposto até a mentir e ser punido por isso no lugar dela. Eu não estou explicando isso muito bem. Eu tinha apenas quatro anos, em primeiro lugar, e a percepção não me atingiu com palavras da maneira como eu estou colocando agora, mas sim em termos de sentimentos e associações e certos flashes mentais dos rostos dos meus pais adotivos com várias expressões faciais neles. Mas aconteceu nessa rapidez, com apenas quatro anos, que eu descobri como criar uma certa impressão por saber que efeito eu iria produzir no meu padrasto com a minha ‘confissão’ implausível de que eu tinha socado Fern no braço e roubado o bambolê dela e corrido por todo o caminho no andar de baixo com ele e começado a bambolear na sala de jantar bem ao lado do guarda-louça com todos os antigos objetos de vidro e enfeites da minha madrasta ali, enquanto Fern, esquecendo tudo sobre o seu braço e bambolê por causa de toda sua preocupação com o vaso e os outros objetos de vidro, veio correndo escada abaixo gritando comigo, me lembrando do quão importante era a regra de que nós não deveríamos brincar na sala de jantar… Significando que por mentir em uma maneira tão deliberadamente inconvincente eu poderia na realidade conseguir tudo que uma mentira direta poderia supostamente me oferecer, e além disso ainda parecer nobre e abnegado, e ainda fazer com que meus pais adotivos se sentissem bem porque eles sempre tendiam a se sentir bem quando uma de suas crianças fazia algo que mostrava caráter, porque era o tipo de coisa que eles não poderiam realmente ajudar mas viam como um reflexo favorável deles como moldadores do caráter de suas crianças. Eu estou colocando tudo isso dessa maneira tão longa, apressada e desajeitada para tentar transmitir a maneira que eu me lembro disso ter me atingido de repente, olhando para cima pro rosto grande e gentil do meu padrasto enquanto ele segurava dois dos pedaços maiores do vaso de vidro e tentava parecer mais bravo do que ele realmente estava. (Ele tinha sempre pensado que as peças mais caras deveriam ser mantidas em segurança armazenadas em algum lugar, enquanto que a visão da minha madrasta era mais pro lado de qual é o ponto de ter coisas boas se você não tiver-las onde as pessoas podem apreciá-las.) Como parecer de certa maneira e levá-lo a pensar uma certa coisa me atingiu assim nessa rapidez. Tenha em mente que eu tinha por volta de só quatro anos. E eu não posso fingir que me senti mal, descobrindo isso — a verdade é que eu me senti ótimo. Eu me senti poderoso, esperto. A sensação era um pouco como se estivesse olhando para parte de um quebra-cabeça que você está montando e você tem uma peça em sua mão e você não consegue ver onde no esquema maior do quebra-cabeça ela deveria ir ou como fazê-la encaixar, sem nenhum motivo então que você possa apontar ou explicar para alguém, ocorre que se você colocar a peça dessa maneira específica ela vai encaixar, e isso acontece, e talvez a melhor maneira de colocar isso seja que naquele minúsculo instante você se sentiu subitamente conectado a algo maior e muito mais do que a figura completa da mesma maneira que a peça era. A única parte que eu negligenciei em antecipar foi a reação da Fern ao vir a ser culpada pelo vaso, e punida, e depois punida ainda mais severamente quando ela continuou negando que tinha sido ela quem estava brincando ao redor da sala de jantar, e a posição dos meus pais adotivos foi que eles ficaram ainda mais chateados e desapontados com ela por mentir do que pelo que estavam pelo vaso, que eles disseram que era apenas um objeto material e não era em última análise importante no esquema maior das coisas. (Meus pais adotivos falaram dessa maneira, eles eram pessoas de altos ideais e valores, humanistas. O grande ideal deles era honestidade total em todas as relações familiares, e mentir era a pior, mais desapontadora infração que você poderia cometer, na visão deles como pais. Eles tendiam a disciplinar a Fern um pouco mais rigidamente do que faziam comigo, a propósito, mas isso também era uma extensão dos valores deles. Eles estavam preocupados em serem justos e me fazerem capaz de sentir que eu era um filho tão real para eles quanto a Fern era, de forma que eu me sentisse o mais seguro e amado possível, e algumas vezes essa preocupação com justiça fazia com que eles fossem um pouco longe demais lá atrás quando se tratava de disciplina.) Eis que a Fern, então, foi tida como sendo uma mentirosa quando ela não era, e isso deve ter machucado-a muito mais do que a punição de fato machucou. Ela tinha apenas cinco anos nessa época. É horrível ser tido como uma fraude ou acreditar que as pessoas pensam que você é uma fraude ou um mentiroso. É possivelmente um dos piores sentimentos do mundo. E mesmo que eu nunca tenha tido realmente nenhuma experiência direta com isso, eu estou convicto de que deve ser duplamente horrível quando você está realmente dizendo a verdade e eles não acreditam em você. Eu não acho que a Fern tenha superado suficientemente esse episódio, embora nós dois nunca tenhamos conversado a respeito disso depois exceto por uma espécie de observação misteriosa que ela fez por cima do ombro dela uma vez quando ambos estávamos no colégio e tendo uma discussão sobre algo e a Fern saiu de casa trovejando. Ela era meio que uma adolescente classicamente problemática—fumo, maquiagem, notas medíocres, sair com caras mais velhos, etc.—enquanto que eu era o garoto-orgulho e tinha um G.P.A. matador e jogava beisebol no time do colégio, etc. Uma maneira de colocá-lo é que eu atuava muito melhor na superfície do que a Fern, embora ela tenha eventualmente se estabelecido e terminado por entrar para uma faculdade e está agora indo OK. Ela é também uma das pessoas mais engraçadas da terra, com um senso de humor muito seco, sutil — eu gosto muito dela. O ponto foi que esse foi o começo para mim de ser uma fraude, embora não seja como se o episódio do vaso quebrado fosse de alguma forma a origem ou causa da minha fraudulência ou algum tipo de trauma de infância que eu nunca superei e que tive que ir para a análise para tentar trabalhá-lo. A minha parte fraude sempre esteve lá, assim com a peça do quebra-cabeça, objetivamente falando, é uma peça verdadeira do quebra-cabeça antes mesmo de você ver como ela encaixa. Por um tempo eu pensei que possivelmente um ou outro dos meus pais biológicos tinham sido fraudes ou tinham carregado algum tipo de gene de fraude ou alguma coisa e que eu tinha herdado isso, mas era um beco sem saída, não tinha jeito de saber. E mesmo que tivesse, que diferença ia fazer? Eu continuava uma fraude, e continuava sendo a minha própria infelicidade com que eu tinha que lidar.      

   Mais uma vez, eu estou ciente que é desajeitado colocar isso tudo dessa maneira, mas o ponto é que tudo isso e mais estava lampejando pela minha cabeça apenas no intervalo da pequena, dramática pausa que o Dr. Gustafson permitiu-se antes de entregar seu grande argumento reductio ad absurdum de que eu não poderia ser uma fraude total se eu tinha justamente acabado de admitir minha fraudulência para ele agora mesmo. Eu sei que você sabe tão bem quanto eu o quão rápido os pensamentos e associações podem voar pela sua cabeça. Você pode estar no meio de uma reunião criativa no seu trabalho ou algo assim, e material o suficiente pode lançar-se através da sua cabeça precisamente nos pequenos silêncios quando as pessoas estão olhando baixo para seus cadernos e esperando pela próxima apresentação que tomaria exponencialmente mais tempo que o da reunião inteira para apenas tentar colocar em palavras essa inundação de uns poucos segundos de silêncio. Esse é outro paradoxo, que a maioria das impressões e pensamentos mais importantes na vida de uma pessoa são aqueles que passam pela cabeça tão rápido que rápido não é nem a palavra certa, eles parecem tão totalmente diferentes ou fora do tempo regular e sequencial do relógio que todos nós vivemos seguindo, e eles têm tão pouca relação com o Inglês meio linear de uma-palavra-depois-da-outra com o qual nós todos nos comunicamos uns com os outros que poderia levar facilmente uma vida inteira só para tentar descrever o conteúdo de um clarão de uma fração de segundo de pensamentos e conexões, etc. — e ainda assim parece que nós todos continuamos tentando usar o Inglês por aí (ou seja lá qual for a língua nativa usada no nosso país, nem precisa dizer) para tentar transmitir para as outras pessoas o que nós estamos pensando e descobrir o que eles estão pensando, quando na verdade lá no fundo todo mundo sabe que é uma farsa e apenas passamos por uma encenação. O que se passa por dentro é justamente rápido e imenso e interconectado demais para que as palavras possam fazer mais do que esboçar escassamente os contornos de no máximo uma parte minúscula disso em um dado instante. A velocidade interna da cabeça ou seja lá o que for dessas ideias, memórias, descobertas, emoções e por aí vai é ainda mais rápida, a propósito—exponencialmente mais rápida, inimaginavelmente mais rápida—quando você está morrendo, o que significa durante o desaparecentemente minúsculo nanosegundo entre quando você está tecnicamente morto e quando a próxima coisa acontece, de modo que o clichê sobre a vida inteira de uma pessoa passar diante dos olhos dela quando ela está morrendo não é de tudo tão distante assim—embora a vida inteira aqui não seja realmente uma coisa sequencial onde primeiro você nasce e depois você está no berço e depois em um momento em cima da base na Legion ball, etc., o que se vê é que é isso que as pessoas geralmente querem dizer quando elas dizem ‘minha vida inteira,’ querendo dizer uma discreta e cronológica série de momentos que elas somaram e chamaram de vida delas. A melhor maneira que eu consigo pensar de tentar dizê-lo é que tudo acontece de uma vez só, mas esse de uma vez só não significa realmente que seja um momento finito no tempo sequencial da maneira como nós pensamos no tempo enquanto estamos vivos, além de que o que vem a ser o significado do termo minha vida não passa nem perto do que nós pensamos que estamos falando quando nós dizemos ‘minha vida.’ Palavras e tempo cronológico criam todos esses mal-entendidos totais quando se trata do que está realmente acontecendo no nível mais básico de todos.  E ainda assim ao mesmo tempo esse Inglês é tudo que nós temos para tentar entender isso e tentar formar qualquer coisa maior ou mais significativa e verdadeira com qualquer um, o que é ainda outro paradoxo. Dr. Gustafson—quem eu iria encontrar novamente mais tarde e descobrir que ele não tinha quase nada a ver com o cara grande e pastoso e reprimido sentado contra as bolinhas de sua cadeira em seu escritório de River Forest com câncer de cólon nele já naquele tempo e ele ainda não sabendo nada exceto que ele não se sentia muito bem lá embaixo nesses últimos tempos quando ia ao banheiro e que se isso continuasse assim ele teria que fazer uma consulta e pedir sua licença para isso—Dr. G. iria mais tarde dizer que todo esse fenômeno de toda minha vida passou diante de mim no final é mais como ser a crista de uma onda na superfície do oceano, o que significa que é apenas no momento que você baixa e começa a deslizar para trás que você realmente está mesmo ciente de que há um oceano absoluto. Quando você está lá em cima e lá fora como a crista de uma onda você pode falar e agir como se você soubesse que é apenas a crista de uma onda no oceano, mas bem no fundo você não pensa que há realmente um oceano absoluto. É quase impossível fazê-lo. Ou como uma folha que não acredita na árvore da qual faz parte, etc. Há todos os tipos de formas de tentar expressá-lo.
   E é claro que todo esse tempo você provavelmente já deve ter notado o que parece ser o paradoxo realmente central e abrangente, que é que essa coisa toda que eu estou falando as palavras não podem realmente fazer e que o tempo não vai realmente em uma linha reta é algo que você está ouvindo como palavras que você tem que começar ouvindo a primeira palavra e depois cada palavra sucessiva depois disso em tempo cronológico para entender, então se eu estou dizendo que palavras e tempo sequencial não têm nada a ver com isso você está imaginando por quê que nós estamos sentados aqui nesse carro usando palavras e tomando um tempo cada vez mais precioso, o que significa será que eu não estou contradizendo logicamente a mim mesmo desde o começo. Sem mencionar que eu talvez esteja cheio de M. sobre saber o que acontece—se eu realmente me matei, como você pode sequer estar ouvindo isso? Significando que eu sou uma fraude. Tá OK, o que você está pensando não importa realmente. Digo, provavelmente importa para você, ou você pensa que importa—isso não foi o que eu quis dizer com não importa. O que eu quis dizer é que não importa realmente o que você pensa sobre mim, porque apesar da aparência isso aqui não é realmente sobre mim. Tudo que estou tentando fazer é esboçar uma pequena parte de como foi depois que eu morri e por que eu pelo menos pensei em fazer isso, de forma que você tenha pelo menos uma ideia de por quê que o que aconteceu mais tarde aconteceu e por quê que isso teve o impacto que teve em quem isso aqui é realmente sobre. O que significa que é como uma abstração ou espécie de introdução, que deveria ser muito breve e esboçada… ainda que claro olhe só quanto tempo e Inglês está parecendo tomar até mesmo para dizer isso. É interessante se você realmente pensar a respeito, quão desajeitado e laborioso parece ser transmitir até mesmo as menores coisas. Quanto tempo você diria que passou, até agora?    

   Uma razão pela qual o Dr. Gustafson teria dado em um péssimo jogador de pôquer ou fraude era que sempre que ele pensava que era um grande momento na análise ele iria sempre fazer uma produção de recostamentos em sua cadeira de escritório, a qual fazia aquele som alto quando a parte traseira era inclinada para trás e seus pés se levantavam sobre os calcanhares de forma que as solas apareciam, embora ele fosse bom em fazer a posição parecer confortável e muito familiar pro seu corpo, como se ele se sentisse bem fazendo isso quando tinha que pensar. A coisa toda não era só levemente dramática em exagero assim como também se mantinha apreciável por alguma razão. Fern, a propósito, tinha cabelos avermelhados e olhos verdes levemente assimétricos—o tipo de verde que as pessoas compram lentes de contato coloridas para conseguir—e atrativos de uma certa maneira meio de feiticeira. Eu a acho atraente, de qualquer maneira. Ela cresceu para se tornar uma pessoa muito equilibrada, espirituosa, autossuficiente, com talvez apenas aquele mais leve borrifo do perfume da solidão que paira em torno de mulheres solteiras por volta dos trinta anos. O fato é que nós somos todos solitários, é claro. Todo mundo sabe disso, é quase um clichê. Então mais uma camada essencial da minha fraudulência é que eu fingia para mim mesmo que a minha solidão era especial, que era unicamente minha culpa porque eu era de alguma forma especialmente fraudulento e vazio. Não é nem um pouco especial, nós todos já entendemos isso. Em extremos. Morto ou não, Dr. Gustafson sabia mais sobre tudo isso do que eu, tanto que ele falou com o que veio a ser uma genuína autoridade e prazer quando disse (talvez um pouco altivamente, dado o quão óbvio isso era), ‘Mas se você é constitucionalmente falso e manipulativo e incapaz de ser honesto sobre quem você realmente é, Neal’ (Neal sendo o meu nome de batismo, estava na minha certidão de nascimento quando eu fui adotado), ‘como foi que você foi capaz de baixar a defesa e a manipulação e ser honesto comigo um momento atrás’ (para isso que tudo aconteceu, apesar de todo o Inglês que foi gasto em apenas conteúdos parciais da minha cabeça em um minúsculo intervalo entre antes e agora) ‘sobre quem você realmente é?’ Então saiu bem como eu tinha previsto que seria o grande insight lógico dele. E embora eu tenha enrolado ele por um tempo para não furar sua bolha, por dentro eu me senti desolado na verdade, porque agora eu sabia que ele iria ser tão flexível e crédulo quanto todos os outros, ele não parecia ter nada que chegasse perto do poder de fogo que eu precisaria para ter alguma esperança de ser resgatado da armadilha da fraudulência e infelicidade que eu tinha construído para mim mesmo. Porque a verdade real era que a minha confissão sobre ser uma fraude e ter perdido tempo duelando defensivamente com ele nas semanas anteriores no intuito de manipulá-lo para que ele me visse como excepcional e perspicaz tinha ela própria sido um tanto quanto manipulativa. Estava bem claro que o Dr. Gustafson, a fim de sobreviver em sua prática privada, não podia ser totalmente estúpido ou obtuso a respeito das pessoas, então parecia razoável assumir que ele tinha percebido a quantidade massiva de desvios e de amostrações em geral que eu fiz durante as primeiras semanas de análise, e, portanto, chegou a algumas conclusões sobre minha necessidade aparentemente desesperada de construir algum tipo de impressão nele, e embora isso não fosse totalmente garantido havia ainda pelo menos uma possibilidade decente de que ele iria me avaliar como sendo basicamente uma pessoa vazia e insegura cuja vida inteira envolveu tentar impressionar as pessoas e manipular a visão delas de mim no intuito de compensar o vácuo interior. Não é como se isso fosse um tipo incrivelmente raro ou obscuro de personalidade, no final das contas. Então o fato de que eu tenha escolhido ser supostamente ‘honesto’ e me diagnosticar em voz alta foi na verdade apenas mais um movimento na minha campanha para certificar que o Dr. Gustafson tinha entendido que como paciente eu era singularmente perspicaz e autoconsciente, e que havia uma chance muito pequena dele ver ou diagnosticar qualquer coisa sobre mim que eu já não estivesse ciente e apto a transformar para a minha própria vantagem tática em termos de criação de qualquer imagem ou impressão de mim que eu quisesse que ele visse naquele momento. Seu insight supostamente grande, então—que tinha como ponto ostensivo, de primeira-ordem, que a minha fraudulência não poderia ser possivelmente tão completa e sem esperança quanto eu afirmava ser, uma vez que minha capacidade de ter sido honesto com ele sobre isso contradizia logicamente a minha afirmação de ser incapaz de ser honesto—na verdade tinha como seu ponto maior, não-dito, a alegação de que ele poderia discernir coisas sobre o meu caráter básico que eu próprio não podia ver ou interpretar corretamente, e, portanto, que ele poderia me ajudar me tirando da armadilha ao apontar inconsistências na minha visão sobre mim como sendo totalmente fraudulento. O fato de que esse insight que pareceu tê-lo deixado tão timidamente satisfeito e excitado era não apenas óbvio e superficial mas também errado—isso era deprimente, muito do descobrir que alguém é fácil de ser manipulado é sempre um pouco deprimente. Um corolário do paradoxo da fraudulência é que você simultaneamente quer enganar todo mundo que você conhece e ainda de alguma maneira espera que você vá encontrar alguém que é o seu par ou igual e que não pode ser enganado. Mas isso foi meio que a última gota, eu já mencionei que eu tentei todo um número de coisas diferentes que não funcionaram. É tão deprimente uma atenuação grosseira, mesmo. Além é claro do fato óbvio de que eu estava pagando esse cara para me ajudar a sair da armadilha e ele tinha agora me mostrado que não tinha poder de fogo mental o suficiente para fazer isso. Então eu estava agora pensando sobre o prospecto de gastar tempo e dinheiro dirigindo para River Forest duas vezes por semana apenas para ficar levando o analista em um monte de voltas de maneira que ele não pudesse ver e de forma que ele pensasse que eu era na realidade menos fraudulento do que eu pensava que eu era e que fazer análise com ele estava gradualmente me ajudando a ver isso. O que significa que ele provavelmente iria tirar mais disso do que eu, para mim isso seria apenas tão fraudulento quanto o usual.  

   Por mais tedioso e esboçado que isso seja, você está pelo menos tendo uma ideia, eu acho, de como era dentro da minha cabeça. Se nada mais, você está vendo o quão exaustivo e solipsista é ser assim. E eu tenho sido assim minha vida inteira, pelo menos dos quatro anos em diante, desde quando eu consigo me recordar. É claro, é também uma maneira realmente estúpida e egoísta de ser, é claro que você consegue ver isso. É por isso que o último e mais profundamente implícito ponto do insight do analista—a saber, aquele quem e que eu acreditava que eu era não era quem eu realmente era de fato—o qual eu pensei que era falso, era na verdade verdadeiro, embora não pelas razões que o Dr. Gustafson, que estava recostado em sua cadeira e alisando seu comprido bigode com seu polegar e indicador enquanto eu bancava o pateta e deixava ele sentir como se estivesse explicando para mim uma contradição que eu não pudesse entender sem sua ajuda, acredite.            

   Uma das minhas outras formas de bancar o pateta nas próximas várias sessões que se seguiram foi protestando contra seu diagnóstico otimista (irrelevantemente, uma vez que a essa altura eu praticamente já tinha desistido do Dr. Gustafson e estava começando a pensar em várias maneiras de me matar sem causar dor ou fazer uma bagunça que desse desgosto a quem quer que me encontrasse) por meio da listagem de várias maneiras com que eu tinha sido fraudulento até mesmo na minha busca por caminhos para alcançar genuína e espontânea integridade. Eu vou poupá-lo do relato da lista inteira novamente. Eu basicamente percorri todo o caminho de volta à minha infância (o que os analistas sempre gostam que você faça) e deixei pra lá. Em parte eu estava curioso para ver o quanto ele poderia aturar. Por exemplo, eu falei para ele sobre ir genuinamente amando beisebol, amando o cheiro da grama e dos aspersores distantes, ou a sensação de ficar batendo meu punho dentro da luva repetidas vezes e gritando ‘Ei, batedorbatedor,’ e o grande e baixo sol vermelho intumescido no começo do jogo versus os arcos de luz chegando com um estrépito no crepúsculo incandescente das entradas tardias, e do vapor e da pureza queimada do cheiro ao passar o meu uniforme da Legion, ou a sensação de deslizar e observar toda a poeira que se levantou e se estabeleceu ao meu redor, ou todos os pais de shorts e sandálias de borracha armando cadeiras de quintal com coolers de isopor, crianças pequenas enganchando seus dedos em volta da cerca do recuo ou correndo após as faltas. O cheiro de pós-barba e suor dos árbitros, a pequena escova de cabo curto com a qual ele se curvaria e limparia a base. Principalmente a sensação de estar dando passos em direção à base sabendo que tudo era possível, um sentimento como de um sol cintilando em algum lugar no alto do meu peito. E sobre como com talvez apenas quatorze anos tudo isso desapareceu e se transformou em preocupação com médias e se eu poderia garantir All City de novo, ou ficando tão preocupado em não estragar tudo que eu nem gostava mais de passar o uniforme antes dos jogos porque isso me dava muito tempo para pensar, ali em pé tão nervoso acerca de ir bem aquela noite que eu já nem conseguia mais notar os pequenos sinais em estalidos que o ferro fazia ou o cheiro singular do vapor quando eu apertava o pequeno botão pro vapor. Como eu basicamente arruinei todas as melhores partes de tudo assim como isso. Como algumas vezes parecia que eu estava realmente adormecido e nada disso era sequer real e algum dia do nada eu iria talvez acordar de repente no meio de um tranco. Isso foi parte da ideia por trás de coisas como integrar uma igreja carismática em Naperville, para tentar acordar espiritualmente em vez de viver nesse nevoeiro de fraudulência. ‘A verdade vos tornará livres’—a Bíblia. Isso era o que a Beverly-Elizabeth Slane gostava de chamar de minha fase sagrada de rolo compressor. E a igreja carismática realmente pareceu ter ajudado muitos dos paroquianos e congregantes que eu conhecia. Eles eram humildes e devotos e caridosos, e se doavam incansavelmente sem pensamento de recompensa pessoal em serviços ativos para a igreja e doando recursos e tempo para a campanha da igreja de construir um novo altar com uma cruz enorme de vidro espesso cuja viga seria iluminada e preenchida com água gaseificada onde era para ter vários tipos de peixes bonitos nadando dentro. (Sendo o peixe um proeminente símbolo de Cristo. Na verdade, a maioria de nós que éramos os mais devotos e ativos na igreja tínhamos adesivos nos pára-choques dos nossos carros sem palavras ou qualquer outra coisa exceto uma linha simples desenhando o contorno de um peixe—essa falta de ostentação tinha me impressionado como sendo elegante e genuína.) Mas com a verdade real aqui sendo o quão rapidamente eu fui de alguém que estava lá porque queria acordar e parar de ser uma fraude para alguém que estava tão ansioso para impressionar a congregação com o quão devoto e ativo eu era que fui até voluntário para ajudar a receber a coleta, e nunca perdi um grupo de estudo o tempo inteiro, e estava em dois diferentes comitês para coordenação do levantamento de fundos para o novo altar aquarial e decidindo precisamente que tipos de equipamentos e peixes seriam usados para a viga. Além de frequentemente ser quem ficava na fila da frente cujas respostas eram mais altas e aquele que erguia ambas as mãos no ar mais entusiasmadamente para mostrar que o Espírito tinha entrado em mim, falando em dom de línguas—consistindo principalmente em d’s e g’s—exceto que não realmente, é claro, porque na verdade eu estava realmente só fingindo falar em dom de línguas porque todos os paroquianos ao meu redor estavam falando em dom de línguas e tinham o Espírito, e então em uma espécie de febre de excitação eu era capaz de ludibriar até a mim mesmo no pensamento de que eu realmente estava com o Espírito se movendo através de mim e falando em dom de línguas quando na verdade eu estava apenas gritando ‘Dugga muggle ergle dergle’ repetidas vezes. (Em outras palavras, tão ansioso para me ver como alguém verdadeiramente renascido que eu realmente me convenci que o balbuciar da língua era uma linguagem real e de alguma forma menos falsa que o Inglês simples em expressar o sentimento do Espírito Santo rolando como um juggernaut bem através de mim.) Isso durou uns quatro meses. Sem mencionar cair para trás sempre que o Pastor Steve descia dentre as filas estalando as pessoas e me estalou na testa com a palma da mão dele, mas caindo para trás de propósito, não sendo genuinamente derrubado pelo Espírito como as outras pessoas aos meus dois lados (um dos quais desmaiou de verdade e teve que ser trazido de volta com sal). Foi só então quando eu estava saindo do estacionamento uma noite depois da Noite de Louvor de Quarta que eu experienciei subitamente um lampejo de autoconsciência ou clareza ou seja lá o que for em que eu subitamente parei de enganar a mim mesmo e me dei conta que eu tinha sido uma fraude todos esses meses na igreja, também, e estava realmente só dizendo e fazendo essas coisas porque todos os paroquianos verdadeiros estavam fazendo e eu queria que todo mundo pensasse que eu era sincero. Isso foi como um nocaute para mim, isso foi o quão vívido eu vi o quanto eu tinha enganado a mim mesmo. A verdade revelada foi que eu era uma fraude ainda maior na igreja no que se refere a ser uma pessoa recentemente renascida e autêntica do que eu tinha sido antes do Diácono e a Sra. Halberstadt tocarem minha campainha pela primeira vez vindo do nada como parte do serviço missionário deles e falando comigo sobre dar a isso uma chance. Porque pelo menos antes da coisa da igreja eu não estava enganando a mim mesmo—eu sabia que eu era uma fraude desde pelo menos os dezenove anos de idade, mas pelo menos eu tinha sido capaz de admitir e encarar a fraudulência diretamente em vez de ficar me enchendo de M. sobre ser alguma coisa que eu não era.     

   Tudo isso foi apresentado no contexto de um pseudo-argumento muito longo sobre fraudulência com o Dr. Gustafson que tomaria tempo demais para relatar para você em detalhes, então eu estou apenas te contando a respeito de alguns dos exemplos mais berrantes. Com o Dr. G. isso ia mais para o lado de um prolongado e multi-sessívo vai-e-volta sobre eu ser ou não uma fraude total, durante o qual eu fui ficando cada vez mais e mais com desgosto de mim mesmo por ficar jogando desse jeito. Nesse ponto da análise eu tinha praticamente decidido que ele era um idiota, ou pelo menos muito limitado em seus insights sobre o que realmente estava acontecendo com as pessoas. (Havia também a questão flagrante do bigode e dele estar sempre brincando com ele.) Essencialmente ele via o que ele queria ver, o que era apenas o tipo de pessoa que eu poderia praticamente comer no lanche em termos de criar seja que ideias ou impressões de mim que eu quisesse. Por exemplo, eu contei para ele sobre o período em que tentei fazer cooper, durante o qual eu parecia nunca falhar em aumentar o meu passo e latejar os meus braços mais vigorosamente sempre que alguém passava dirigindo por mim ou olhava de seu quintal, de forma que eu terminava tendo esporões ósseos e eventualmente tinha que parar completamente. Ou gastando pelo menos duas ou três sessões recordando o exemplo da aula introdutória de meditação no Centro Comunitário Downers Grove que Melissa Betts de Settleman, Dorn me fez assistir, na qual através de pura força de vontade eu sempre forçava a mim mesmo a permanecer totalmente imóvel com minhas pernas cruzadas e as costas perfeitamente retas bem depois que os outros estudantes todos já tinham desistido e caído para trás em suas esteiras estremecendo e segurando suas cabeças. Desde o encontro da primeira aula, apesar do instrutor pequeno e moreno ter nos dito para ficar de início por apenas dez minutos em imobilidade porque a maioria das mentes Ocidentais não consegue manter mais do que alguns minutos de quietude e concentração atenta sem se sentirem tão inquietas e pouco à vontade que elas não podiam suportar, eu sempre permanecia absolutamente imóvel e focado na respiração do meu prana com a face inferior do diafragma mais expandida do que a de todos eles, algumas vezes por até trinta minutos, mesmo que meus joelhos e parte inferior das costas estivessem queimando e eu sentisse como se enxames de insetos estivessem rastejando por todo o meu braço e disparando para fora do topo da minha cabeça—e o Mestre Gurpreet, embora ele sempre mantivesse sua expressão facial inescrutável, me fez uma profunda e aparentemente respeitosa reverencia e disse que eu me sentei quase como uma estátua viva em um atento repouso, e que ele estava impressionado. O problema era que nós todos deveríamos continuar praticando nossa meditação entre as aulas por nossa própria conta em nossas casas, e quando eu tentava fazer isso sozinho eu não parecia conseguir sentar imóvel e acompanhar minha respiração por mais do que alguns poucos minutos antes de me sentir como se estivesse formigando por toda minha pele e tivesse que parar. Eu só podia sentar e parecer quieto e atento e resistir à inacreditável inquietude e os sentimentos horríveis quando todos nós estávamos fazendo isso na aula — o que significa que só quando tinham outras pessoas para ser impressionadas. E mesmo na aula, a verdade era que eu estava frequentemente me concentrando não tanto em acompanhar o meu prana mas sim em me manter totalmente imóvel e na postura correta e passando uma profunda, pacífica e meditativa expressão facial para o caso de alguém estar trapaceando e estar com os olhos abertos olhando ao redor, além também de garantir que o Mestre Gurpreet continuaria me vendo como excepcional e continuaria me abordando com o que veio a ser o meu apelido dado por ele na aula, o qual era ‘a estátua.’             

  Finalmente, nas últimas aulas, quando o Mestre Gurpreet nos falou para sentarmos imóveis e só focarmos o quanto nós conseguíssemos confortavelmente e então esperou quase uma hora antes de finalmente tocar seu pequeno sino com a pequena coisa prateada para sinalizar que o período de meditação tinha acabado, só eu e uma garota extremamente magra e pálida que tinha seu próprio assento de meditação que ela trouxe para a aula com ela fomos capazes de nos sentar imóveis e focar por uma hora inteira, embora em vários pontos diferentes eu tenha ficado tão inquieto e com cãibras, sentindo como se um brilhante fogo azul estivesse subindo minha espinha e disparando invisivelmente do topo da minha cabeça como bolhas de cor explodindo de novo e de novo mais uma vez atrás das minhas pálpebras, que eu pensei que iria saltar gritando e mergulhar de cabeça na janela. E no final do curso, quando havia também uma oportunidade de se inscrever para a próxima sessão, que era chamada de Aprofundamento da Prática, Mestre Gurpreet presenteou vários de nós com diferentes certificados honorários, e o meu tinha meu nome e a data e estava inscrito em caligrafia negra, MEDITADOR CAMPEÃO, ESTUDANTE OCIDENTAL MAIS IMPRESSIONANTE, A ESTÁTUA. Foi só depois que eu adormeci aquela noite (eu tinha finalmente meio que me compromissado e dito a mim mesmo que eu estava praticando a disciplina meditativa em casa à noite ao deitar e focar em acompanhar minha respiração muito de perto quando eu estava adormecendo, e isso veio a ser uma ajuda fenomenal para dormir) que enquanto eu estava adormecido eu tive o sonho sobre uma estátua comunitária e percebi que o Mestre Gurpreet tinha na verdade toda a probabilidade de ter visto bem através de mim o tempo todo, e que o certificado era na realidade uma sutil repreensão ou piada às minhas custas. Significando que ele estava me deixando saber que ele sabia que eu era uma fraude e nem ao menos chegando perto de aquietar a incessante conivência da minha mente sobre como impressionar pessoas no intuito de alcançar atenção e honrar meu eu interior. (Obviamente, o que ele parecia não ter adivinhado era que na realidade eu não parecia realmente ter um eu interior, e que quanto mais eu tentava ser genuíno mais vazio e fraudulento eu terminava me sentindo por dentro, o que eu não contei para ninguém a respeito até a minha punhalada na análise com o Dr. Gustafson.) No sonho, eu estava na área comunitária da cidade em Aurora, perto do memorial do tanque Pershing ao lado da torre do relógio, e o que eu estou fazendo no sonho é esculpir uma enorme estátua de mármore ou granito de mim próprio, usando um gigantesco cinzel de ferro e um martelo do tamanho daqueles que eles te dão para tentar acertar o sino no topo do grande termômetro ou algo do tipo desses brinquedos de parque, e quando a estátua está finalmente terminada eu a coloco em cima de um grande coreto ou plataforma e gasto todo meu tempo polindo-a e impedindo que os pássaros pousem nela ou façam seus negócios nela, limpando o lixo e mantendo a grama asseada ao redor do coreto. E no sonho a minha vida inteira passa em um flash, o sol e a lua indo e voltando através do céu como um limpador de pára-brisa de novo e de novo, e eu pareço nunca dormir ou comer ou tomar banho (o sonho toma lugar em um tempo onírico oposto ao tempo desperto, cronológico), significando que estou condenado a uma vida inteira sem ser nada além de uma espécie de curador da estátua. Eu não estou dizendo que isso foi sutil ou difícil de descobrir. Todo mundo desde a Fern, Mestre Gurpreet, a garota anoréxica com seu próprio assento, e Ginger Manley, até pessoas da firma e alguns dos representantes da mídia de quem nós compramos tempo (eu ainda sendo um comprador midiático nessa época) todos passaram, algumas várias vezes—teve um ponto em que Melissa Betts e o novo noivo dela até estenderam uma manta e fizeram uma espécie de pequeno piquenique à sombra da estátua—mas nenhum deles jamais examinava ou dizia qualquer coisa. É obviamente outro sonho sobre fraudulência, como no sonho em que eu sou supostamente um grande pop star no palco mas tudo que eu realmente faço é uma sincronização labial com um dos velhos discos que meus pais adotivos tinham do Mamas and Papas que está num toca-discos fora do palco, e alguém cujo rosto eu não consigo jamais examinar o suficiente para decifrar fica pondo a mão na área do disco como se fosse fazê-lo pular ou arranhar, e o sonho inteiro faz a minha pele arrepiar. Esses sonhos eram óbvios, eles eram avisos do meu subconsciente de que eu era vazio e uma fraude e que era só uma questão de tempo antes que a farsa inteira desmoronasse. Outra das antiguidades entesouradas da minha madrasta era um relógio de bolso prateado do avô materno dela escrito em Latim RESPICE FINEM na parte interior da tampa. Foi só depois que ela faleceu e meu padrasto disse que ela queria que eu ficasse com ele que eu me incomodei de olhar melhor para o termo, depois que eu já tinha começado a sentir um arrepiamento como tive com o certificado do Mestre Gurpreet. Muito da qualidade de pesadelo do sonho sobre a estátua era devido à maneira como o sol corria indo e vindo através do céu e a velocidade com a qual a minha vida inteira soprava assim, na área comunitária. Era obviamente também o meu subconsciente esclarecendo-me como o instrutor de meditação tinha visto através de mim o tempo todo, depois do que eu fiquei muito embaraçado até para tentar conseguir um reembolso pela aula de Aprofundamento da Prática, a qual agora não tinha mais jeito de eu sentir que poderia aparecer, ainda que ao mesmo tempo eu ainda tivesse fantasias em que o Mestre Gurpreet se tornava meu mentor ou guru e usava todos os tipos inescrutáveis de técnicas orientais para me mostrar o caminho para meditar a mim mesmo em direção ao meu eu verdadeiro…         

   …Etc., etc. Eu vou poupá-lo de mais exemplos, vou poupá-lo por exemplo das literalmente incontáveis exemplificações da minha fraudulência com garotas—com as damas, como dizem—em tipo todos os relacionamentos que eu já tive, ou a quase inacreditável quantidade de fraudulência e cálculos envolvidos na minha carreira—não apenas em termos de manipulação do consumidor e manipulação do cliente para que acreditassem que as ideias da sua agência são o melhor caminho para manipular o consumidor, mas nas políticas intra-escritórios da agência em si, como por exemplo ao avaliar que tipo de coisas seus superiores querem acreditar (incluindo a crença de que eles são mais espertos que você e que é por isso que eles são seus superiores) e depois dando a eles o que eles querem mas fazendo isso apenas de forma sutil o suficiente para que eles nunca tenham a chance de te ver como um sicofanta ou sim-senhor (o que eles querem acreditar que não é o que eles querem realmente) mas em vez disso te verem como um pensador independente e cabeça-dura que de tempos em tempos se curva ao peso da inteligência superior e do poder de fogo criativo deles, etc. A agência inteira era um grande balé de fraudulência e manipulação das imagens das pessoas sobre suas habilidades de manipular imagens, um corredor virtual de espelhos. E eu era bom nisso, lembra, eu prosperei lá.            

   

Foi a pura quantidade de tempo que o Dr. Gustafson gastou tocando e alisando seu bigode que indicou que ele não estava ciente de estar fazendo isso e na verdade estava subconscientemente tranquilizando a si próprio de que ainda estava ali. O que não é um hábito especialmente sutil, em termos de insegurança, uma vez que, apesar de tudo, pêlos faciais são conhecidos como uma característica sexual secundária, o que significa que o que ele estava realmente fazendo era tranquilizar a si próprio de que alguma outra coisa ainda estava ali, se é que você me entende. Isso foi um pouco do motivo pelo qual não foi nenhuma surpresa real quando se descobriu que a direção total que ele queria que a análise prosseguisse envolvia questões de masculinidade e como eu entendia minha masculinidade (minha ‘virilidade’ em outras palavras). Isso também ajudou a explicar tudo sobre a fêmea-perdida-subindo e os objetos-em-forma-de-dois-testículos-que-pareciam-deformados nas pinturas na parede que dava para os pequenos tambores Africanos ou Indianos e pequenos figurinos com (por vezes) características sexuais exageradas que ficavam na prateleira acima da mesa, além do cachimbo, e do tamanho desnecessário de sua aliança, e até mesmo o aspecto um tanto quanto exagerado de desordem de moleque intrínseco no escritório em si. Estava bem claro que havia algumas maiores inseguranças sexuais e talvez até mesmo ambiguidades de tipo-homossexual que o Dr. Gustafson estaria subconscientemente tentando esconder dele próprio e tranquilizar-se a respeito, e uma maneira óbvia com que ele fazia isso era meio que projetando suas inseguranças em seus pacientes e fazendo-os acreditar que a cultura da America tinha uma maneira excepcionalmente brutal e alienadora de fazer lavagem cerebral em seus homens desde tenra idade em todos os tipos de crenças prejudiciais e superstições sobre o que ser tido como o assim-chamado ‘homem de verdade’ seria, tal como a competitividade no lugar da união, ganhar a todos os custos, dominando os outros através da inteligência ou força de vontade, sendo forte, não mostrando suas emoções verdadeiras, dependendo dos outros te verem como um homem de verdade no intuito de tranquilizar a si mesmo no que se refere à sua própria virilidade, vendo o seu próprio valor somente em termos de realizações, ficando obcecado pela sua carreira ou renda, se sentindo como se você estivesse sendo constantemente julgado ou em exibição, etc. Isso foi mais tarde na análise, depois do período aparentemente interminável no qual após todos os exemplos de fraudulência que eu dava a ele ele fazia um show me congratulando por ter sido capaz de revelar o que eu sentia que eram vergonhosos exemplos de fraudulência, e disse que isso era prova de que eu tinha muito mais habilidade de ser genuíno do que eu (aparentemente por causa das minhas inseguranças ou medos masculinos) parecia estar apto a me dar os créditos. Além de que não parecia ser exatamente uma coincidência que o câncer que ele já abrigava estava em seu cólon—esse lugar vergonhoso, sujo e secreto bem lá perto do reto—com a ideia sendo que usar o seu reto ou o seu cólon para secretamente abrigar o crescimento de um alien seria um símbolo flagrante tanto de homossexualidade quanto da crença repressiva de que seu reconhecimento aberto se igualaria à doença e morte. Tanto o Dr. Gustafson quanto eu demos boas risadas sobre isso depois que nós dois morremos e estávamos fora do tempo linear e no processo de mudança dramática, pode apostar. (Fora do tempo não é só uma expressão ou maneira de falar, a propósito.) A essa altura da análise eu estava brincando com ele da maneira como um gato faz com um pássaro ferido. Se eu tivesse um pingo de real respeito-próprio eu teria parado e voltado ao Centro Comunitário Downers Grove e me jogado na misericórdia do Mestre Gurpreet, já que excetuando talvez uma ou duas garotas com quem saí ele parecia ter sido o único capaz de ver bem através de mim até o núcleo da minha fraudulência, além de sua maneira obliqua e muito seca de indicar isso para mim traindo um tipo de serena indiferença para com se eu tinha mesmo entendido que ele viu bem através de mim que eu tinha achado incrivelmente impressionante e genuína—aqui o Mestre Gurpreet era um homem com, como dizem, nada a provar. Mas eu não fiz, em vez disso eu meio que me enganei ao me meter a continuar indo ver o Dr. G. duas vezes por semana por quase nove meses (em direção ao final era apenas uma vez por semana porque nessa altura o câncer tinha sido diagnosticado e ele estava fazendo tratamento com radiação todas as terças e quintas), dizendo a mim mesmo que pelo menos eu estava tentando encontrar algum local em que eu pudesse conseguir ajuda encontrando um jeito de ser genuíno e parar de manipular todo mundo ao meu redor para que vissem ‘a estátua’ como sendo ereta e impressionante, etc.             

 
   Nem tampouco é estritamente verdade que o analista não tinha nada de interessante a dizer ou que ele não fornecia às vezes alguns modelos ou ângulos úteis para encarar o problema básico. Por exemplo, descobriu-se que uma de suas premissas operacionais básicas era a alegação de que havia apenas duas orientações básicas e fundamentais que uma pessoa poderia ter diante do mundo, (1) amor e (2) medo, e ambos não podiam coexistir (ou, em termos lógicos, que seus domínios eram exaustivos e mutuamente exclusivos, ou que seus dois conjuntos não tinham interseção mas sua união compreendia todos os elementos possíveis, ou:  
‘(x) ((Mx → ~ (Ax)) & (Ax → ~ (Mx))) & ~ ((Ǝx) (~ (Mx) & ~ (Ax))’ ),        
significando em outras palavras que cada dia da sua vida foi gasto em servir um ou outro desses mestres, e ‘Ninguém pode servir a dois senhores’ — a Bíblia de novo — e que uma das piores coisas sobre o conceito de masculinidade competitiva e orientada pelo sucesso que a America supostamente inseriu em seus homens é que isso causa um mais ou menos constante estado de medo que faz com que o amor genuíno beire o impossível. Isto é, que o que se passou por amor para os homens americanos tem sido geralmente apenas a necessidade de ser considerado de uma certa maneira, significando que os homens de hoje estão tão constantemente com medo de ‘não chegar lá’ (frase do Dr. G., evidentemente sem intenções de trocadilhos) que eles têm que gastar todo seu tempo convencendo os outros de sua ‘validade’ masculina (a qual ocorre de também ser um termo da lógica formal) no intuito de aliviar a própria insegurança, fazendo o amor genuíno beirar o impossível. Embora pareça um pouco simplista ver esse medo como sendo apenas um problema masculino (tente observar uma garota em pé sobre uma balança algum dia), ocorre que o Dr. Gustafson estava muito perto de estar certo nesse conceito dos dois mestres—embora não da maneira que ele, enquanto vivo e confuso sobre sua própria identidade real, acreditava—e mesmo enquanto eu jogava fingindo argumentar ou não estar entendendo muito bem onde ele estava querendo chegar, a ideia que me atingiu foi que talvez a raiz real do meu problema não fosse a fraudulência mas sim uma incapacidade de amar realmente, até para amar genuinamente meus pais adotivos, ou Fern, ou Melissa Betts, ou Ginger Manley de Aurora West High em 1979, quem eu muitas vezes pensei como sendo a única garota que eu  amei verdadeiramente, embora a platitude do Dr. G. sobre os homens sofrerem lavagem cerebral para equiparar amor com realização ou conquista também se aplique aqui. A pura verdade era que Ginger Manley tinha apenas sido a primeira garota com quem eu tinha ido até o fim, e a maior parte dos meus sentimentos afetuosos por ela eram na verdade apenas nostalgia nutrida pelo sentimento de imensa validação cósmica que eu senti quando ela finalmente me deixou tirar seu jeans inteiramente do caminho e colocar minha assim chamada ‘masculinidade’ dentro dela, etc. Não há realmente nenhum clichê maior do que perder sua virgindade e depois ficar tendo todos os tipos de retrospectivas carinhosas pela garota envolvida. Ou o que Beverly-Elizabeth Slane, uma técnica em pesquisa que eu costumava ver ao sair do trabalho quando eu era um comprador da mídia, e com quem tive muitos conflitos perto do fim, disse, o que eu não acho que eu tenha alguma vez comentado com o Dr. G. a respeito, sabedoria da fraudulência, provavelmente porque foi algo que cortou um pouco próximo demais do osso. Perto do fim ela tinha me comparado a alguma peça ultra-cara da nova medicina ou equipamento de diagnóstico que consegue discernir mais sobre você em um rápido scaneamento do que você poderia alguma vez saber por si só—mas o equipamento não se importa com você, você é apenas uma sequência de processos e códigos. O que a máquina entende sobre você na verdade não significa nada para ela. Mesmo que ela seja muito boa no que ela faz. Beverly tinha um temperamento ruim combinado com um sério poder de fogo, ela não era alguém que você iria querer que estivesse puta com você. Ela disse que nunca tinha sentido o olhar de alguém tão penetrante, discernente, e, porém, tão totalmente vazio de interesse, como se ela fosse algum tipo de quebra-cabeça ou problema que eu estivesse resolvendo. Ele disse que foi graças a mim que ela descobriu a diferença entre estar sendo penetrada e realmente sabendo versus penetrada e apenas violada—desnecessário dizer que esse agradecimento foi sarcástico. Uma parte disso foi apenas a maquiagem emocional dela—ela achava impossível realmente terminar um relacionamento ao menos que todas as pontes estivessem queimadas e coisas fossem ditas de forma tão devastadora que não pudesse haver nenhuma possibilidade de reaproximação para assombrá-la ou impedi-la de se mover adiante. No entanto isso penetrou, e eu nunca esqueci o que ela disse naquela carta.    
 
   Mesmo que ser fraudulento e ser incapaz de amar sejam em última análise a mesma coisa (uma possibilidade que o Dr. Gustafson nunca pareceu ter levado em consideração não importando quantas vezes eu tenha colocando para que ele visse), ser incapaz de amar realmente era ao menos um diferente modelo ou lente através da qual se podia ver o problema, além de que inicialmente parecia ser uma maneira promissora de atacar o paradoxo da fraudulência em termos de reduzir a parte da auto-aversão que reforça o medo e o consequente movimento para tentar manipular as pessoas de modo a fornecer toda a aprovação que eu negava a mim mesmo. (O termo do Dr. G. para aprovação era validação.) Esse período foi praticamente o zênite da minha carreira na análise, e por algumas semanas (durante duas das quais eu não pude ver o Dr. Gustafson de qualquer modo, porque algum tipo de complicação em sua doença exigiu que ele fosse ao hospital, e quando ele voltou ele parecia ter perdido não só peso mas também algum tipo de parte essencial de sua massa total, e não parecia mais ser grande demais para sua velha cadeira de escritório, que continuava guinchando mas agora não tão ruidosamente, além de que boa parte da desordem e dos papéis tinham sido arrumados e colocados em várias caixas de cartolina marrom contra a parede em baixo das duas pinturas tristes, e quando eu voltei para vê-lo a ausência de bagunça foi especialmente perturbadora e triste, por alguma razão) era verdade que eu sentia alguma esperança genuína pela primeira vez desde a parte auto-enganadora da experiência anterior em Naperville com a Igreja da Espada Flamejante do Redentor. E, no entanto, ao mesmo tempo essas semanas também meio que levaram diretamente à minha decisão de me matar, embora eu tenha que simplificar e linearizar uma grande parte de coisas interiores no intuito de transmitir para você o que realmente aconteceu. Caso contrário levaria uma quase literal eternidade para recontar, nós já concordamos sobre isso. Não é que as palavras ou a linguagem humana parem de ter qualquer significado ou relevância depois que você morre, a propósito. É mais a especificidade e uma-palavra-depois-da-outra da ordenação temporal delas que deixa. Ou não. É difícil de explicar. Em termos lógicos, algo expressado em palavras vai continuar tendo a mesma ‘cardinalidade’ mas não mais a mesma ‘ordinalidade.’ Todas as palavras diferentes continuam lá, em outras palavras, mas já não é mais uma questão de qual vem primeiro. Ou você pode dizer que já não são mais as séries de palavras mas agora mais como um limite perante o qual as séries convergem. É difícil não querer colocar em termos lógicos, uma vez que eles são os mais abstratos e universais. O que significa que eles não têm conotação, você não sente nada por eles. Ou talvez imagine que tudo que qualquer um na terra já disse ou sequer pensou para si próprio tudo entrando em colapso e explodindo em um enorme, combinado, instantâneo som—embora instantâneo seja um pouco enganoso, uma vez que implica outros instantes antes e depois, e não seja bem assim. É mais como o súbito lampejo interno de quando você vê ou se dá conta de algo—um flash súbito ou seja o que for de uma epifania ou insight. Não é apenas que aconteça bem mais rápido do que você pode quebrar o processo e arranjá-lo com o Inglês, mas sim que acontece em uma escala em que nem sequer há tempo para ficar ciente de qualquer tipo de tempo que for e no qual está acontecendo, o lampejo—tudo que você sabe é que há um antes e um depois, e depois você está diferente. Eu não sei se isso faz sentido. Eu estou apenas tentando te fornecer isso de vários ângulos diferentes, é tudo a mesma coisa. Ou você pode pensar nisso mais como sendo uma certa configuração de luz do que uma soma de palavras ou séries de sons, também, depois. O que é de fato verdade. Ou como uma prova de um teorema—porque se uma prova é verdadeira então é verdade em todo lugar e todo o tempo, não apenas quando ocorre de você dizê-la. O fato é que ocorre que os simbolismos lógicos realmente seriam a melhor maneira de expressá-lo, porque a lógica é totalmente abstrata e fora do que nós pensamos como sendo tempo. É a coisa mais próxima do que isso realmente é.  Esse é o porquê dos paradoxos lógicos serem o que realmente deixam as pessoas loucas. Muitos dos grandes lógicos da história terminaram se matando, isso é um fato.       
 
   E tenha em mente que esse lampejo pode acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento.                    
   Aqui entra o paradoxo básico de Berry, a propósito, se você quiser um exemplo do porquê de lógicos com um incrível poder de fogo poderem dedicar suas vidas inteiras a resolver essas coisas e ainda assim terminarem por bater suas cabeças contra a parede. Esse tem a ver com números grandes—o que significa que são realmente grandes, passando de um trilhão, passando de dez trilhões de trilhões, bem lá em cima. Quando você chega bem lá em cima, leva um tempo para sequer se descrever números tão grandes em palavras. ‘A quantidade de um trilhão, quatrocentos e três bilhões para o poder do trilionésimo’ leva mais de vinte silabas para descrever, por exemplo. Você pegou a ideia. Agora, quando são ainda mais altos do que essa imensidão, números em escala cósmica, imagine agora o menor número que não pode ser descrito abaixo de vinte-cinco silabas. O paradoxo é que o menor número que não pode ser descrito abaixo de vinte-cinco silabas, o que, é claro, é em si a descrição desse número, é constituído por apenas vinte-quatro silabas, o que, é claro, está abaixo de vinte-cinco silabas. Então o que você deve fazer agora?
          
   Ao mesmo tempo, o que realmente levou a isso em termos casuais, contudo, ocorreu durante talvez a terceira ou quarta semana em que o Dr. G. tinha voltado a ver seus pacientes após sua hospitalização. Embora eu não vá alegar que o incidente específico não atingiria a maioria das pessoas como absurdo ou até mesmo insípido, como as causas vão. A verdade é que tarde da noite em uma noite de Agosto após o retorno do Dr. G., quando eu não conseguia dormir (o que aconteceu bastante depois do período da cocaína) e estava sentado tomando um copo de leite ou algo do tipo e assistindo televisão, zapeando no controle quase ao acaso pelos canais a cabo da maneira que você faz quando está tarde, eu parei em uma parte de um antigo episódio de Cheers no final do andamento da série quando o personagem do analista, Frasier (o qual veio a ter seu próprio programa), e Lilith, sua noiva e também analista, acabaram de entrar no palco de uma taverna underground, e Frasier está perguntando como tinha sido o dia de trabalho dela, e Lilith diz, ‘Se eu tiver que aguentar mais um desses yuppies aparecendo pra choramingar sobre como ele não consegue amar, eu vou vomitar.’ Essa fala  provoca uma enorme gargalhada na audiência do estúdio do programa, o que indica que eles—e então por extensão demográfica toda a audiência nacional em casa também—reconhecem o quão clichê e melodramático é esse tipo de reclamação envolvendo o conceito de incapacidade de amar. E, sentado ali, quando eu subitamente percebi que mais uma vez eu tinha me conduzido de forma a enganar a mim mesmo, dessa vez ao pensar que essa era uma maneira mais verdadeira ou promissora de conceber o problema da fraudulência—e, por extensão, que eu tinha de algum modo iludido a mim mesmo ao quase acreditar que o pobre e velho Dr. Gustafson tinha alguma coisa em seu arsenal mental que poderia realmente me ajudar, e que a verdade real estava mais para que provavelmente eu só continuava vendo ele em parte por piedade e em parte para que eu pudesse fingir para mim mesmo que eu estava dando passos para me tornar mais autentico quando na verdade tudo que eu estava fazendo era tomar por idiota a casca gravemente doente de um cara e me sentindo superior a ele porque eu estava apto a analisar sua própria maquiagem psicológica muito mais acuradamente do que ele podia analisar a minha—o flash de perceber tudo isso no exato momento da enorme gargalhada da audiência mostrou que quase todo mundo nos Estados Unidos  provavelmente já tinha visto através da inautenticidade dessa reclamação há no mínimo desde o tempo em que o episódio tivesse sido originalmente exibido—tudo isso jorrou pela minha cabeça no minúsculo intervalo que levou para me dar conta do que eu estava assistindo e até mesmo pra me lembrar o que os personagens Frasier e Lilith representavam, o que significa talvez meio segundo no máximo, e isso meio que me destruiu, essa é a única forma que consigo descrever, como se o que quer de esperança que eu ainda tinha de encontrar algum caminho para fora da armadilha que eu tinha feito para mim mesmo tivesse sido arrancada do ar e humilhada no palco, como se eu fosse um desses estúpidos personagens cômicos sendo tanto o alvo da piada quanto a única pessoa a não pegar a piada—e, em suma, eu fui para a cama me sentindo tão fraudulento, obscurecido, sem esperança e cheio de auto-desprezo quanto eu jamais havia sentido, e foi na manhã seguinte depois disso que eu acordei decidido que eu ia me matar e terminar com toda a farsa. (Como você deve se lembrar, Cheers era uma série incrivelmente popular, e mesmo em syndication seus números eram tão altos que se um anunciante local quisesse comprar tempo dela os espaços custavam tanto que você muito provavelmente teria que construir sua estratégia local inteira ao redor desses espaços.) Eu estou comprimindo uma enorme quantidade do que se passou na minha psique naquela próxima-de-ser-a-última noite, todas as diferentes compreensões e conclusões que eu atingi enquanto eu estava ali deitado na cama incapaz de dormir ou até mesmo mexer (nenhuma frase de série ou gargalhada de audiência vai dentro ou fora de si constituir uma razão para suicídio, é claro)—embora para você eu imagino que provavelmente não esteja parecendo tão comprimido assim de maneira alguma, você está pensando aqui está esse cara enrolando e enrolando e por que ele não chega logo na parte em que ele se mata e explica como que ele está sentado aqui perto de mim em um pedaço de maquinaria de alta potência me contando tudo isso se ele morreu em 1991. O que na realidade eu sabia que iria desde o primeiro momento que eu acordei. Acabou, eu tinha decidido dar fim à charada. 
 
   Depois do café da manhã eu liguei para o trabalho para falar que estava doente e fiquei em casa o dia inteiro sozinho. Eu sabia que se eu estivesse ao redor de alguém eu iria automaticamente cair em fraudulência. Eu tinha decidido tomar uma cartela inteira de Benadryl e depois assim que estivesse muito sonolento e relaxado eu iria pegar o carro e atingir a velocidade máxima em uma estrada rural na saída dos subúrbios do extremo oeste e colidir de frente contra a pilastra de uma ponte de concreto. Benadryl me deixa extremamente nebuloso e sonolento, sempre me deixou. Eu passei a maior parte da manhã escrevendo cartas para o meu advogado e a C.P.A., e notas breves para o diretor criativo e meu sócio gerente que originalmente me trouxe a bordo da Samiety e Cheyne. Nosso grupo criativo estava no meio de umas preparações muito delicadas de campanha, e eu queria me desculpar por de alguma maneira tê-los deixado em desamparo. É claro que eu não me sentia assim tão arrependido—Samiety e Cheyne era um balé de fraudulência, e eu estava por aqui com isso. A nota era provavelmente apenas para que, em última análise, as pessoas que realmente importavam na S. & C. estivessem mais aptas a lembrar de mim como um cara decente e consciente que acabou por talvez ser apenas muito sensitivo e atormentado por seus demônios pessoais—‘Quase bom demais pra esse mundo’ era o que eu parecia ser incapaz de deixar de fantasiar muitos deles dizendo depois que a notícia viesse à tona. Eu não escrevi uma nota para o Dr. Gustafson. Ele tinha sua própria quota de problemas, e eu sabia que na nota eu gastaria um monte de tempo tentando ver se eu estava sendo honesto mas na realidade apenas dançando ao redor da verdade, a qual era que ele era um homossexual ou andrógino profundamente reprimido e não tinha real lugar nesse negócio cobrando os pacientes para deixarem ele projetar seus próprios desajustes neles, e que a verdade era que ele estaria fazendo um favor a si próprio e a todos os outros se apenas passasse pelo Garfield Park e chupasse alguém nos arbustos e tentasse honestamente decidir se ele tinha gostado disso ou não, e que eu era uma fraude total por continuar dirigindo todo o caminho até River Forest  para vê-lo e jogar ao redor dele como se ele fosse um rato de brinquedo enquanto me dizia que havia algum possível ponto não-fraudulento nisso. (Tudo o que, é claro, mesmo se eles não estivessem morrendo de câncer no cólon bem na sua frente você continuaria sem nunca poder realmente chegar e dizer para alguém, uma vez que certas verdades podem muito bem destruí-los — e quem tem esse direito?) 
 
   Eu gastei quase duas horas antes de tomar o primeiro Benadryl compondo à mão uma nota para a minha irmã Fern. Na nota eu me desculpei por qualquer dor que o meu suicídio e a fraudulência e/ou incapacidade de amar que tinham precipitado-o pudessem causar nela e no meu padrasto (que continuava vivo e bem e agora morava no Condado de Marin, Califórnia, onde ele lecionou parte do tempo e fez auxílio comunitário aos sem-teto do Condado). Eu também usei a ocasião da carta e toda a espécie de urgência de último testamento associada a ela para permitir me desculpar com a Fern sobre ter manipulado meus pais adotivos de forma que eles acreditassem que ela tinha mentido sobre o antigo vaso de vidro em 1967, bem como por meia-dúzia de outros incidentes e ações rancorosas e fraudulentas que eu sabia que tinham a causado dor e que eu havia me sentido mal a respeito desde então, mas nunca tinha realmente visto nenhuma maneira para abordar com ela ou expressar o meu honesto arrependimento por isso. (Acontece que existem coisas que você pode discutir em uma nota de suicídio que iriam ser apenas bizarras demais se expressadas em qualquer outro tipo de meio.) Apenas um exemplo de tal incidente foi durante um período em meados de ’70, quando Fern, como parte da puberdade, passou por algumas mudanças físicas que a fizeram parecer robusta por um ano ou dois—não gorda, mas com os quadris grandes e peituda e meio que muito mais larga do que ela era quando pré-adolescente—e é claro que ela estava muito, muito sensível a respeito disso (a puberdade sendo também um tempo de terrível autoconsciência e sensibilidade sobre a própria imagem do corpo, obviamente), tanto que meus pais adotivos fizeram um grande esforço para nunca dizer nada sobre a nova largura da Fern ou sequer levantar qualquer tópico relacionado a hábitos alimentícios, dieta e exercício, etc. E eu no que se refere à minha parte também nunca disse nada sobre isso, não diretamente, mas eu trabalhei em todos os tipos de maneiras muito sutis e indiretas de atormentar a Fern sobre o tamanho dela de uma tal maneira que os meus pais adotivos nunca viram nada e eu nunca poderia ser acusado de nada que eu não pudesse depois olhar tudo em volta de mim com uma chocada, incrédula expressão facial como se eu não tivesse nem ideia do que ela estava falando a respeito, tal como apenas uma rápida levantada de sobrancelha quando os olhos dela encontraram os meus quando ela estava repetindo de prato no jantar, ou um rápido e discreto, ‘Você tem certeza que vai caber?’ quando ela veio para casa com uma saia nova. O que me lembro mais vividamente envolvia o corredor do segundo andar da nossa casa, a qual era em Aurora e era uma casa de três andares (incluindo o porão) mas não tão espaçosa ou larga, o que significa que era magrela em seus três volumes assim como muitas outras que você sempre vê todas abarrotadas juntas ao longo das ruas residenciais em Naperville e Aurora. O corredor do segundo andar, que era entre o quarto da Fern e o topo da escada de um lado e o meu quarto e o banheiro do segundo andar do outro, era limitado e de certo modo estreito, mas de forma alguma perto de ser tão estreito quanto eu fazia parecer sempre que eu e a Fern passávamos um pelo outro nele, comigo apertando minhas costas contra a parede do corredor e afunilando meus braços e estremecendo como se mal fosse haver espaço o suficiente para alguém com a inacreditável largura dela passar se espremendo por mim, e ela nunca diria nada ou sequer olharia para mim quando eu fazia isso mas somente passaria por mim até chegar ao banheiro e fechar a porta. Mas eu sei que isso deve ter machucado ela. Um pouco depois, ela entrou em um período adolescente em que ela dificilmente comia qualquer coisa mais, e fumava cigarros e mascava vários pacotes de chiclete por dia, e usava muita maquiagem, e por um tempo ela ficou tão magra que ela parecia angulosa e um pouco como um inseto (apesar de que é claro que eu nunca disse isso), e eu uma vez, através do buraco da fechadura do quarto deles, ouvi uma breve conversa em que minha madrasta dizia que ela estava preocupada porque ela não achava que a Fern estivesse tendo normalmente aqueles dias do mês dela mais porque tinha ficado tão abaixo do peso, e ela e meu padrasto discutiram a possibilidade de levá-la para ver algum tipo de especialista. Aquele período passou por si só, mas na carta eu contei pra Fern que eu sempre me lembrei disso e de certos outros períodos em que eu fui cruel ou tentei fazê-la se sentir mal, e que eu me arrependia muito deles, apesar de ter dito que eu não queria parecer tão egoísta ao ponto de pensar que uma simples desculpa podia apagar qualquer um dos danos que eu tivesse causado nela quando nós estávamos crescendo. Por outro lado, eu também a assegurei de que não era como se eu tivesse ficado por anos carregando uma culpa excessiva ou levando esses incidentes para fora de qualquer proporção. Eles não eram traumas alteradores de vida ou algo desse tipo, e em várias formas eles eram provavelmente todos bem típicos dos tipos de crueldades que crianças tendem a infligir umas nas outras quando estão crescendo. Eu também a assegurei que nenhum desses incidentes nem meu remorso sobre eles tinham alguma coisa a ver com o meu suicídio. Eu simplesmente disse, sem entrar em nada como o nível de detalhes que eu estou fornecendo a você (porque o meu propósito na carta era, obviamente, muito diferente), que eu estava me matando porque eu era essencialmente uma pessoa fraudulenta que parecia não ter ou o caráter ou o poder de fogo de encontrar uma maneira de parar mesmo depois de ter me dado conta da minha fraudulência e do terrível preço que ela exigia (eu não disse nada para ela sobre as diferentes compreensões e paradoxos, qual seria o ponto?). Eu também inseri que havia também uma boa possibilidade de que, quando tudo houvesse sido dito e feito, eu não fosse nada mais do que um yuppie na marcha rápida que não conseguia amar, e que eu achava a banalidade disso insuportável, em grande parte porque eu era evidentemente tão vazio e inseguro que eu tinha uma necessidade patológica de me ver como de alguma forma excepcional e marcante o tempo todo. Sem entrar em muita explicação e argumentação, eu também disse pra Fern que se sua reação inicial a essas razões para me matar fosse pensar que eu estava sendo muito, muito duro comigo mesmo, então ela deveria saber que eu já estava ciente que essa era a mais provável reação que a minha nota iria produzir nela, e tinha provavelmente deliberadamente construído a nota para ao menos em parte induzir a exatamente essa reação, exatamente da maneira como minha vida inteira eu frequentemente disse e fiz coisas designadas para induzir certas pessoas a acreditarem que eu era uma pessoa genuinamente notável cujos padrões pessoais eram tão altos que eram de longe muito duros consigo, o que no lugar me fazia parecer atrativamente modesto e não-presunçoso, e era uma grande razão para a minha popularidade com tantas pessoas em todas as diferentes avenidas da minha vida—o que Beverly-Elizabeth Slane chamou de meu ‘talento para engraciação’—mas era contudo basicamente calculada e fraudulenta. Eu também disse à Fern que eu a amava muito, e a pedi para que retransmitir todos esses sentimentos ao Condado de Marin por mim.            
   
   Agora nós estamos chegando à parte em que eu efetivamente me mato. Isso ocorreu às 9:17 PM  de 19 de Agosto, 1991, se você quer o tempo fixado precisamente. Além disso, eu vou poupá-lo da maior parte das preparações das últimas horas e o vai-e-volta dos conflitos e hesitações, que foram muitos mesmo. Suicídio vai tão contra a tantos instintos e impulsos profundamente enraizados que ninguém em posse de sua mente consegue enfrentá-lo sem atravessar uma grande quantidade de vai-e-volta internos, intervalos em que quase se muda de ideia, etc. O lógico alemão Kant estava certo a esse respeito, seres humanos são todos praticamente idênticos em termos de nossas raízes inatas. Embora raras vezes nós estejamos conscientes disso, nós somos todos basicamente apenas instrumentos ou expressões de nossas unidades evolucionárias, as quais são por sua vez expressões de forças que são infinitamente maiores e mais importantes do que nós somos. (Embora estar realmente consciente disso seja uma questão totalmente diferente.) Então eu não vou nem sequer tentar descrever as várias diferentes vezes naquele dia quando eu sentei na minha sala de estar e tive um furioso vai-e-volta mental sobre se eu ia realmente enfrentar isso. Em primeiro lugar, foi intensivamente mental e tomaria uma enorme quantidade de tempo para colocar em palavras, além de que iria sair como um tanto clichê ou banal no sentido que muitos dos pensamentos e associações foram basicamente os mesmos tipos de coisas genéricas que quase qualquer um que está confrontando a morte iminente vai terminar pensando. Tal como, ‘Essa é a última vez que eu vou amarrar meu sapato,’ ‘Essa é a última vez que eu vou olhar para essa árvore de borracha em cima do gabinete do som,’ ‘Quão delicioso é esse pulmão se enchendo de ar,’ ‘Esse é o último copo de leite que eu vou tomar,’ ‘Que presente totalmente inestimável essa visão totalmente ordinária do vento levantando os ramos das árvores e movendo-os ao seu redor é.’ Ou, ‘Eu nunca mais vou ouvir de novo o som lamurioso da frigideira chiando na cozinha,’ (a cozinha e o recanto do café são bem à direita da minha sala de estar), etc. Ou, ‘Eu não vou ver o sol se levantar amanhã ou observar o quarto gradualmente se desescurecer e se decifrar, etc.,’ e ao mesmo tempo tentando convocar a memória da forma exata como o sol se levanta sobre os campos úmidos e a rampa I-55 de aparência molhada que deita bem ao leste da porta de vidro corrediço do meu quarto pela manhã. Havia sido um Agosto quente e úmido, e se eu seguisse em frente com o meu suicídio eu não iria nunca mais chegar a sentir o resfriamento e a secagem graduais que começam aqui por volta de meados de Setembro, ou ver as folhas mudarem ou escutá-las sussurrando ao longo da borda do pátio na parte externa do andar da S. & C. no edifício em S. Dearborn, ou ver a neve ou colocar uma pá e um saco de areia no porta-malas, ou morder uma pêra perfeitamente madura e não-granulada, ou colocar um pedaço de papel higiênico em um corte de barbear. Etc. Se eu entrasse e fosse ao banheiro escovar meus dentes seria a última vez que eu fiz esse tipo de coisa. Eu sentei ali e pensei sobre isso, olhando para a árvore de borracha. Tudo parecia tremer um pouco, da forma como coisas refletidas na água iriam tremer. Eu observei o sol começar a descer sobre o desenvolvimento dos condomínios indo até o sul do limite da corporação Darien na estr. Lily Cache e me dei conta de que eu nunca iria ver a construção e o paisagismo das novas casas completados, e que o isolamento branco das novas casas envolvido com o nome comercial TYVEK sobre ele chacoalhando com todo o vento aqui fora iria um dia ter tapume de vinil ou placas de tijolos e persianas coordenadas a cores sobre eles e eu não iria ver isso acontecer ou estar apto a passar dirigindo e saber o que estava realmente escrito lá debaixo de todos aqueles exteriores agradáveis. Ou a visão da janela do recanto do café dos campos das grandes fazendas próximos à minha revelação, com os sulcos arados todos paralelos de modo que se eu me inclinar e alinhar as linhas deles bem eles parecem todos se lançarem juntos em direção ao horizonte como se disparados por algo gigante. Você pegou a ideia. Eu estava basicamente no estado no qual um homem se dá conta que tudo que ele vê vai durar mais do que ele. Como construção verbal eu sei que isso é clichê. Como um estado no qual se encontrar realmente, no entanto, é outra coisa, acredite em mim. Onde agora todo movimento assume uma espécie de aspecto cerimonial. A verdadeira sacralidade do mundo como visto (o mesmo tipo de estado que o Dr. G. iria tentar descrever com analogias com o oceano e cristas de ondas e árvores, você deve se lembrar que eu já mencionei isso). Isso é literalmente um um-trilhonésimo dos vários pensamentos e experiências internas que eu passei naquelas últimas poucas horas, e eu vou poupar nós dois recontando mais alguma, já que eu estou ciente que isso acaba parecendo um tanto quanto batido. O que na verdade não foi, mas eu também não vou alegar que foi totalmente autentico ou genuíno. Uma parte de mim continuava calculando, representando—e isso foi parte da qualidade cerimonial daquela última tarde. Mesmo enquanto eu escrevia a minha nota para a Fern, por exemplo, expressando sentimentos e arrependimentos que eram reais, uma parte de mim estava percebendo que boa e sincera a nota era, e antecipando o efeito na Fern nessa ou naquela frase de coração, enquanto ainda mais uma outra parte estava observando a cena inteira de um homem em uma camisa social sem gravata sentando em seu recanto do café escrevendo uma nota com o coração em sua última tarde vivo, a superfície da mesa de madeira clara tremendo com a luz do sol e a mão do homem estável e o rosto simultaneamente assombrado por arrependimento e enobrecido pela resolução, essa parte de mim meio que pairando acima e bem à esquerda de mim mesmo, avaliando a cena, e pensando que representação boa e de aparência genuína ela seria em um drama se nós todos apenas já não tivéssemos sido submetidos a incontáveis cenas exatamente como essa em dramas desde que nós assistimos um filme pela primeira vez ou lemos um livro, o que de alguma forma implicava que cenas reais como a da minha nota de suicídio eram convincentes e genuínas apenas para os seus participantes, e para qualquer outro apareceria como sendo banal e até de uma certa forma brega e choramingona, o que é um tanto quanto paradoxal quando você leva em consideração—como eu fiz, sentado ali no recanto do café—que a razão pela qual cenas como essa vão parecer velhas ou manipulativas para uma audiência é que nós já vimos tantas delas em dramas, e ainda assim a razão pela qual nós já vimos tantas delas em dramas é que essas cenas realmente são dramáticas e convincentes e permitem que as pessoas comuniquem realidades emocionais muito profundas e complicadas que são quase impossíveis de articular de qualquer outra maneira, e ao mesmo tempo continuava com outra faceta ou parte de mim assimilando que dessa perspectiva o meu problema básico era que com uma idade precoce eu de alguma maneira escolhi moldar minha sina através da suposta audiência do drama da minha vida ao invés de com o drama em si, e que mesmo agora eu estava assistindo e calibrando a suposta qualidade da minha performance e seus prováveis efeitos, e assim ali estava em última análise a mesma fraude manipulativa escrevendo a nota para a Fern que eu havia sido do começo ao fim da minha vida e que tinha me levado a essa cena clímax de escrever e assinar e endereçar o envelope e afixar o selo postal e colocar o envelope no bolso da minha camisa (totalmente consciente da ressonância dele ficar descansando ali, próximo do meu coração, na cena), planejando deixá-lo em uma caixa de correio no caminho até a estr. Lily Cache e a pilastra da ponte na qual eu planejava conduzir meu carro em velocidade suficiente para deslocar toda a parte dianteira e me empalar no volante e instantaneamente me matar. Auto-aversão não é a mesma coisa que querer estar em sofrimento ou em uma morte lenta, se eu ia fazer isso eu queria que fosse instantâneo.    
       
   Em Lily Cache, as pilastras e as margens íngremes dos lados da ponte suportam a Rota Estadual 4 (também conhecida como Rodovia Braidwood) que cruza acima de uma passagem elevada de cimento tão coberta com grafites que a maioria deles você não consegue ler. (O que meio que derrota o propósito do grafite, na minha opinião.) As pilastras em si são precisamente fora da estrada e cerca de tão amplas quanto esse carro. Além disso, a interseção é isolada bem na saída da região rural de Romeoville, mais ou menos dez milhas ao sul dos limites dos subúrbios do sudoeste. É o verdadeiro lugar nenhum. As únicas casas são fazendas localizadas bem lá atrás da estrada e embelezadas com silos e celeiros, etc. À noite no verão os pontos-orvalhados são elevados e há sempre neblina. É um campo de fazendas. Eu nunca passei uma vez sequer aqui na 4 sem parecer ser a única coisa em cada estrada. O milho alto e os campos como um oceano verde a todo redor, insetos sendo o único barulho real. Dirigindo sozinho sob estrelas cremosas e a pequena foice inclinada da lua, etc. A ideia era ter o acidente e qualquer explosão e fogo que estivessem envolvidos ocorrendo em algum lugar isolado o suficiente para que mais ninguém o visse, de modo que haveria o menor aspecto de performance na coisa que eu fosse capaz de manejar e nenhuma tentação de gastar meus últimos segundos tentando imaginar que tipo que impressão a visão e o som do impacto poderiam causar em alguém assistindo. Eu estava em parte preocupado de que poderia ser espetacular ou dramático e poderia parecer que o motorista estava tentando fazer isso da maneira mais dramática possível. Esse é o tipo de merda que nós perdemos nossa vida pensando a respeito.         
   O nevoeiro do terreno tende a ficar mais intenso a partir do segundo que passa a parecer que o mundo inteiro é apenas o que as luzes dos seus faróis alcançam. Faróis altos não funcionam no nevoeiro, eles apenas deixam as coisas piores. Você pode ir em frente e tentar usá-los mas você vai ver o que acontece, tudo que eles fazem é acender a névoa de forma que ela parece ainda mais densa. Esse é um tipo de paradoxo-menor, que algumas vezes você pode na verdade ver mais longe com faróis baixos do que com altos. Tudo bem—e ali está a construção e o chacoalhante TYVEK envolvido nas casas que se você realmente fizer isso você nunca vai chegar a ver alguém morando dentro. Embora não vá machucar, vai ser realmente instantâneo, eu posso te dizer isso. Os insetos dos campos são quase ensurdecedores. Se com o milho alto desse jeito você observar enquanto o sol se põe você pode praticamente observá-los se levantarem para fora dos campos como a sombra de alguma grandiosa figura em ascensão. Na maior parte mosquitos, eu não sei o que todos eles são. Há um universo inteiro de insetos lá que nenhum de nós vai alguma vez ver ou saber algo a respeito. Além de que você vai perceber que o Benadryl não ajuda tanto assim uma vez que você já está a caminho. Aquela ideia toda foi provavelmente mal concebida.         
 
   Tudo bem, agora nós estamos chegando ao que eu prometi e que conduzi você por toda essa aborrecida sinopse do que levou a isso só nessa esperança. Significando como é morrer, o que acontece. Certo? Isso é o que todo mundo quer saber. E você vai, confie em mim. Quer você decida seguir em frente com isso ou não, quer eu de alguma forma fale com você sobre isso da maneira que você pensa que eu vou tentar fazer ou não. Não é o que ninguém pensa, em primeiro lugar. A verdade é que você já sabe como é. Você já conhece a diferença entre o tamanho e a velocidade de tudo que lampeja através de você e o pedaço minúsculo e inadequado de tudo que você consegue alguma vez deixar alguém saber. Como se dentro de você estivesse esse enorme quarto cheio do que parece ser tudo no universo inteiro uma vez ou outra e ainda assim as únicas partes que saem têm que de alguma forma ser espremidas através de um desses minúsculos buracos de fechadura que você vê debaixo da maçaneta em portas mais antigas. Como se nós todos estivéssemos tentando ver uns aos outros através desses minúsculos buracos de fechadura.   
 
   Mas ela tem uma maçaneta, a porta pode ser aberta. Mas não do jeito que você pensa. Mas e se você pudesse? Pense por um segundo—e se todos esses mundos de coisas infinitamente densas e instáveis dentro de você em todos os momentos da sua vida viessem agora a ser de alguma forma totalmente abertos e expressáveis após, após o que você pensa como sendo você tiver morrido, porque e se após agora cada momento em si é um infinito mar ou espaço ou passagem de tempo no qual expressá-lo ou transmiti-lo, e você nem precisa de nenhum Inglês organizado, você pode como dizem abrir a porta e estar no quarto de qualquer um em suas próprias formas multiformes e ideias e facetas? Porque escute—nós não temos muito tempo, aqui é onde a Lily Cache entra em uma ladeira levemente baixa e as margens começam a se aproximar de um despenhadeiro, e você pode decifrar apenas os contornos do sinal não-iluminado da estande da fazenda que nunca mais esteve aberta, o último sinal antes da ponte—então escute: O Que exatamente você pensa que você é? Os milhões e trilhões de pensamentos, memórias, justaposições—mesmo as loucas como essa, você está pensando—que lampejam através da sua cabeça e desaparecem? Alguma soma ou restante disso? Sua história? Você sabe quanto tempo passou desde que eu te disse que eu era uma fraude? Você se lembra que estava olhando para o relógio RESPICEM pendurado no retrovisor e vendo a hora, 9:17? O que você está olhando agora? Coincidência? E se não tiver passado tempo nenhum?* A verdade é que você já ouviu isso. Que é assim que isso é. Que isso é o que dá espaço para os universos dentro de você, todos os intermináveis desdobramentos fractais de conexões e sinfonias de vozes diferentes, os infinitos que você nunca pode mostrar para outra alma. E você pensa que isso faz de você uma fraude, a pequena fração que alguém alguma vez vai ver? É claro que você é uma fraude, é claro que o que as outras pessoas veem nunca é você. E é claro que você sabe disso, e é claro que você tenta administrar a parte que elas veem se você sabe que é apenas uma parte. Quem não iria? É o que chamam de livre-arbítrio, Sherlock. Mas ao mesmo tempo é por isso que se sente tão bem ao se entrar em colapso e chorar em frente aos outros, ou gargalhar, ou falar em dom de línguas, ou entoar um cântico em Bengali—não é o Inglês mais, não está sendo espremido através de nenhum buraco.
 
   Então chore tudo que você quiser, eu não vou contar pra ninguém.     
  
   Mas não teria feito de você uma fraude mudar de ideia. Isso seria triste de se fazer porque você pensa que você de qualquer maneira tem que fazer.   
 
   Não vai machucar, no entanto. Vai ser alto, e você vai sentir coisas, mas elas vão atravessar você tão rápido que você não vai nem se dar conta que as está sentindo (o que é um pouco como o paradoxo que eu costumava ressaltar com o Gustafson—é possível ser uma fraude se você não está ciente que é uma fraude?). E o momento muito breve de fogo que você vai sentir vai ser quase bom, como quando suas mãos estão frias e há uma fogueira e você segura essas mãos na direção dela.
 
   A realidade é que morrer não é ruim, mas leva uma eternidade. E essa eternidade não é tempo nenhum. Eu sei que isso soa como uma contradição, ou talvez só um jogo de palavras. O que isso realmente é, acaba se descobrindo, é uma questão de perspectiva. A grande figura, como dizem, na qual o fato é que todo esse vai-e-volta aparentemente interminável entre a gente veio e se foi e veio e se foi de novo no mesmo instante que a Fern mexe em uma panela fervente para o jantar, e seu padrasto comprime um pouco de tabaco de cachimbo com o dedão, e Angela Mead usa um pequeno e engenhoso utensílio de catálogo para desenrolar o pêlo de gato da blusa dela, e Melissa Betts inala antes de responder a alguma coisa que ela pensa que o marido dela acabou de dizer, e David Wallace pisca em meio ao ocioso passar das páginas com as fotos das classes de Aurora West H.S. em seu anuário de 1980 vendo minha foto e tentando, através do minúsculo buraco de fechadura dele próprio, imaginar tudo que poderia ter acontecido para levar à minha morte no ardente acidente de um único carro que ele tinha lido a respeito em 1991, como que tipos de dor e problemas poderiam ter levado esse cara a pegar seu elétrico- Corvette azul e tentar dirigir com toda aquela medicação O.T.C. em sua corrente sanguínea—David Wallace vindo a ter um conjunto enorme e totalmente inorganizável de pensamentos internos, sentimentos, memórias e impressões do cara dessa pequena foto que estava um ano a frente no colégio com aparentemente quase uma aura de neon ao redor dele o tempo todo de excelência escolar e atlética e popularidade e sucesso com as garotas, assim como em cada observação cortante ou mesmo nos gestos e expressões de mínimo desgosto vindo da parte desse cara quando David Wallace fazia um strikeout olhando na Legion ball ou dizia alguma coisa pateta em uma festa, e sobre o quão impressionante e autenticamente à vontade no mundo esse cara sempre tinha parecido, como uma pessoa viva real ao invés do apavorado e pateticamente-autoconsciente fantasma ou rascunho de pessoa que David Wallace sabia que ele próprio era na época. Verdadeiramente um cara laureado, na marcha rápida, que na melhor tradição humana David Wallace tinha imaginado naquela época como sendo feliz e irrefletido e totalmente não-perturbado por vozes lhe dizendo que havia alguma coisa profundamente errada com ele que não estava errada com nenhum dos outros e que ele tinha que gastar todo o seu tempo e energia tentando descobrir o que fazer ou dizer no intuito de personificar um homem sequer marginalmente normal e aceitável dos E.U., tudo isso tinindo ao redor da cabeça de ’81 de David Wallace a cada segundo e se movendo tão rápido que ele nunca teve a chance de agarrar e tentar lutar ou argumentar contra isso ou até sequer até sentir isso exceto como um nó em seu estômago enquanto ele estava na cozinha de seus pais verdadeiros passando o uniforme e pensando em todas as maneiras com que ele poderia estragar tudo com um strikeout olhando ou ao perder bolas ganhas e revelar sua verdadeira essência patética diante desse rebatedor de .418 e sua irmã feiticeiramente linda e todos os outros na audiência em cadeiras de quintal no gramado ao longo dos lados do campo da Legion (todos os quais provavelmente já viram através da simulação desde o início de qualquer forma, ele tinha certeza)—em outras palavras David Wallace tentando, se unicamente no segundo em que as pálpebras dele estivessem abaixadas, de alguma maneira reconciliar o que esse cara luminoso demonstrava por fora com seja lá o que for em seu interior que devia tê-lo conduzido a se matar de uma maneira tão dramática e indubitavelmente dolorosa—com David Wallace também totalmente consciente que o clichê de que você nunca pode realmente saber o que está acontecendo dentro de outra pessoa é velho e insípido e ainda assim ao mesmo tempo tentando muito conscientemente proibir essa consciência de zombar do esforço da tentativa ou levar toda linha de raciocínio à espiral recurvada que te impede de alguma vez chegar a algum lugar (um tempo considerável tendo passado desde 1981, é claro, e David Wallace tendo emergido de anos de uma guerra literalmente indescritível contra si próprio com um pouco mais de poder de fogo do que ele tinha quando estava em Aurora West), a parte mais real, mais paciente e sentimental dele ordenando que essa outra parte ficasse em silêncio como se olhando-a niveladamente no olho e dizendo, quase em voz alta, ‘Nem mais uma palavra.’ 
                

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David Foster Wallace 
Good Old Neon, ‘Oblivion: Stories’
Traduzido por J.V.
                                                                                                                           


[*Uma pista de que há alguma coisa não completamente real sobre o tempo sequencial da maneira que você o experimenta são os vários paradoxos do tempo supostamente passando e de um assim-chamado ‘presente’ que está sempre se desenrolando no futuro e criando mais e mais passado atrás dele. Como se o presente fosse esse carro—um belo carro a propósito—e o passado é a estrada que nós só deixamos para trás, e o futuro é o ponto iluminado na estrada adiante que nós ainda não chegamos, e o tempo é o movimento para frente do carro, e o presente preciso é o pára-choque dianteiro do carro enquanto ele corta a névoa do futuro, então é agora e então um tiquinho depois um agora completamente diferente, etc. Exceto que se o tempo está realmente passando, qual é a velocidade dele? A que ritmo o presente muda? Vê? Significa que se nós usamos o tempo para medir movimento ou ritmo—o que nós fazemos, é a única maneira que você pode—95 milhas por hora, 70 batimentos cardíacos por minuto, etc.—como nós devemos medir o ritmo com que o tempo se move? Um segundo por segundo? Isso não faz sentido. Você não consegue sequer falar sobre o tempo fluindo ou se movendo sem se chocar contra paradoxos imediatamente. Então pense por um segundo: E se não houver realmente movimento nenhum? E se tudo isso estiver se desenrolando no lampejo que você chama de presente, a primeira, infinitamente minúscula fração de segundo de impacto quando o pára-choque dianteiro do carro em alta velocidade está acabando de começar a tocar a pilastra, exatamente antes do pára-choque se enrugar e deslocar a extremidade da parte dianteira e você ir violentamente para frente e a coluna da direção voltar para o seu peito como se tivesse sido disparada por algo enorme? Significando que e se na verdade esse agora é infinito e nunca passa realmente da maneira que a sua mente é supostamente determinada para entender o passar, de forma que não apenas a sua vida inteira como também cada uma das maneiras humanamente concebíveis de descrever ou prestar contas dessa vida têm tempo de lampejar como o neon formado por aquelas letras cursivas conectadas que letreiros e janelas de comércios amam tanto usar através da sua mente tudo de uma vez no instante literalmente imensurável entre o impacto e a morte, assim que você começa avançar de encontro ao volante em um ritmo que nenhum cinto já construído conseguiria conter—FIM.